7 curiosidades sobre o Orçamento do Estado
Em entrevista à Revista Montepio, J. Albano Santos, ex-docente universitário de cadeiras de Finanças Públicas e antigo quadro do Ministério das Finanças, explica em detalhe, mas de uma forma compreensível para o cidadão comum, alguns aspetos sobre o Orçamento do Estado (OE) desconhecidos da generalidade das pessoas. Curioso?
1. Quantas pessoas podem estar envolvidas na criação do Orçamento do Estado?
Apurar com um mínimo de rigor o número de pessoas que contribuem para a preparação do OE é uma tarefa votada ao fracasso. Basta pensar que, para além dos muitos funcionários de serviços centrais do Ministério das Finanças – com destaque para a DGO (Direção-Geral do Orçamento) e o Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI) – a elaboração do documento pressupõe a colaboração de funcionários dispersos por, praticamente, todos os serviços do Estado. Arriscaria, pois, a dizer que o OE é fruto do trabalho, com diferentes intensidades, de alguns milhares de pessoas.
2. O Orçamento do Estado é mais um exercício de ficção ou um filme documental?
Se é certo que o OE só poderá cumprir plenamente as suas funções se assentar na realidade socioeconómica do País, também se trata de um ato eminentemente político – o que abre espaço para alguma ‘criatividade’, ainda que limitada. Leroy-Beaulieu, um dos clássicos deste ramo de conhecimento, explicou bem os limites dessa criatividade quando, depois de afirmar que, na prática, as Finanças Públicas “são, infelizmente, a criada submissa e quase escrava de uma patroa arbitrária e fantasiosa, a política”, logo deixou o aviso de que, se “há ciências absolutamente serenas que têm indulgência para com aqueles que as menosprezam e os deixam em sossego, a ciência das finanças não pertence a esta categoria: tem uma forma terrível de se vingar dos governos que a ignoram ou a desafiam”. Julgo que, um pouco por todo o lado, são conhecidos exemplos de resultados desastrosos provocados por orçamentos dominados pela fantasia. E essa evidência contribui para moderar os devaneios dos governantes em matéria orçamental, muito especialmente nos regimes democráticos. Deste modo, para utilizar os seus termos, diria que o OE é um filme documental com alguns apontamentos de ficção.
3. É mais fácil fazer o Orçamento do Estado ou executá-lo?
A preparação do OE constitui uma tarefa ciclópica, seja pelo número de pessoas que envolve, seja pela complexidade de algumas operações que requer, seja pelo melindre político das opções que necessariamente exige. Daí que se possa pensar que a preparação do OE é mais difícil do que a sua execução, uma vez que esta, em abstrato, resume-se à cobrança das receitas e à realização das despesas previstas. Acontece, porém, que o Ministério das Finanças não é uma simples tesouraria do Estado: para além de ter de assegurar a disciplina financeira de todos os serviços públicos envolvidos, cabe-lhe também controlar a execução do OE, de modo a salvaguardar o cumprimento dos objetivos fixados para a política orçamental. Ora, isto não seria muito difícil num mundo ideal em que as coisas evoluíssem exatamente conforme previsto na altura da aprovação do OE. Mas no mundo real, onde a conjuntura económica está sujeita a turbulências inesperadas, com as inevitáveis repercussões nas receitas e nas despesas públicas, procurar garantir os valores fixados para variáveis como o défice é um exercício particularmente difícil. Seria, pois, tentado a dizer que a preparação e a execução do OE são tarefas igualmente exigentes.
4. O que distingue o Orçamento do Estado de um orçamento de uma família ou de uma empresa?
Podemos identificar no OE duas facetas essenciais: uma previsão e uma autorização. Enquanto previsão, o OE não tem nada de radicalmente original em relação aos orçamentos que se fazem no seio de uma família ou de uma empresa, pois qualquer agente económico tem necessidade de antecipar as suas receitas e as suas despesas a fim de, com maior ou menor rigor, programar a sua atividade. Já a segunda faceta torna o OE definitivamente diferente do que se passa no setor privado, dado que configura uma autorização que a entidade politicamente soberana, a Assembleia da República (AR), dá ao Governo para que este possa efetuar as despesas e cobrar as receitas nele inscritas. É, aliás, nesta autorização que se estriba a função mais nobre do OE: a de servir de instrumento para a AR controlar a ação do Governo. Apesar do nevoeiro que algumas liturgias tecnocráticas possam lançar sobre esta função, ela mantém uma importância decisiva para que o OE continue a ser, como dizia Benjamin Constant, a arma do povo contra todos os abusos, sejam políticos ou financeiros.
5. O ministro das Finanças é sempre o mau da fita no processo orçamental?
Muito dificilmente um ministro das Finanças conseguirá escapar a essa imagem, por maior que possa ser a sua competência para o cargo. Na base dessa desventura está um facto inelutável: o orçamento é o terreno em que a retórica dos ideais é confrontada com a realidade dos números. Do lado dos ideais acotovela-se uma multidão que, sempre de dedo em riste e, por vezes, com razão, exige melhores salários, melhores reformas, melhores escolas, melhores hospitais, melhores transportes e… menos impostos, menos défice, menos dívida. Do lado da inexorável realidade dos números (sobretudo a que lhe vem dos cofres públicos) está o ministro das Finanças, quantas vezes sozinho e sem a varinha mágica que muitos parecem acreditar que ele tem na secretária. Deste confronto tão desigual um ministro das Finanças só sairá sem o rótulo de mau da fita se tiver uma grande proteção divina…
6. Não há memória de um Governo que tenha entregue o documento antes do último dia do prazo legal. Tem alguma explicação para esta “tradição”?
É um fenómeno para o qual nunca encontrei uma razão determinante. E ainda hoje não consigo mais do que apontar alguns fatores que podem contribuir para tal. Desde logo, o OE está no centro do processo político. Pelo volume de recursos que movimenta e pela forma como os obtém e os distribui, representa um palco privilegiado, não só para a luta partidária, como também para a ação dos múltiplos grupos de pressão que se perfilam em qualquer sociedade moderna. Assim, os interesses em presença são tantos e tão poderosos que, mesmo depois de aprovada a proposta de lei do OE, continuam a mover influências para obter vantagens para as suas causas, arrastando o fecho definitivo do documento para a data-limite que a lei fixa para a sua entrega na AR. Um outro fator, igualmente controverso, poderá radicar na análise económica da burocracia: a chamada Lei de Parkinson postula que o trabalho tende a expandir-se até gastar todo o tempo disponível para o realizar. E, por fim, não resisto a evocar um traço da nossa maneira de ser que nos convida a deixar tudo para o fim…
7. A complexidade e a linguagem técnica do Orçamento do Estado torna-o inacessível ao cidadão comum. Não seria útil o Governo criar uma versão simplificada deste documento que “trocasse por miúdos” o seu conteúdo?
O OE tem vincadas repercussões no quotidiano da generalidade das pessoas, pelo que deve ser considerado uma questão básica de cidadania. Daí que seja antiga a defesa da obrigação de tornar públicos todos os atos relevantes do processo orçamental, a fim de que o cidadão comum tenha a possibilidade de formar uma ideia correta sobre a política orçamental. Aliás, a nossa lei acolhe esta orientação e estabelece o princípio da transparência orçamental que obriga a dar publicidade a todos os tópicos importantes das várias fases do OE. O alcance desta medida é, porém, reduzido por uma combinação de dois fatores: alguma complexidade da matéria e um claro alheamento da maioria dos cidadãos. A ideia de uma versão simplificada do OE poderia ultrapassar o primeiro daqueles fatores (e isso já seria positivo), mas tenderia a esbarrar no segundo. Talvez a solução definitiva pudesse ser a de incluir no sistema de ensino uma disciplina isolada e obrigatória de educação cívica que abordasse, naturalmente em termos introdutórios, esta e outras questões igualmente fundamentais para uma cidadania plena. Mas isso são contas de outro rosário…
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