número de mulheres numa das áreas mais importantes do mercado de trabalho da atualidade, a tecnologia, teima em permanecer reduzido. Porquê? Mulheres do presente e do futuro respondem.
Houve um momento determinante na vida de Isabel Trancoso. “Andava no liceu e, um dia, fui a uma visita à Junta de Energia Nuclear. Fiquei fascinada com o reator e com todo aquele mundo. Fui ter com o guia e perguntei-lhe que curso devia tirar para trabalhar ali. A resposta foi: ‘Engenharia Eletrotécnica – Correntes Fracas!’ Aquilo ficou.” Pouco depois, em 1973, Isabel entrava no curso de Engenharia Eletrotécnica do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa.
“Sempre gostei muito de letras e de ciências”, conta a professora catedrática do IST e ex-presidente do conselho científico do INESC-ID (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores – Investigação e Desenvolvimento). Acabou por juntar as duas na vida académica ligada à inteligência artificial, ao processamento da fala e à programação. “Estou numa área de charneira, onde é tudo muito interdisciplinar. Trabalho com pessoas de Eletrotecnia, Informática e Biomédica, mas também de Linguística, Medicina ou Psicologia. As pessoas não fazem ideia de que há estas pontes todas, desconhecem as inúmeras áreas de aplicação das tecnologias, e isso explica muito a falta de miúdas nesta área”, acredita a também membro do núcleo de Diversidade e Igualdade de Género do IST.
Para reagir à falta de cerca de 30 mil profissionais na área das tecnologias da informação e comunicação (TIC) é preciso mostrar que este não é apenas um mundo de máquinas, começando pelas idades mais precoces. “Não é a falar às turmas do 12.º ano que vamos cativar alunos para as engenharias. Aí eles já sabem o que querem. Tem de se começar no ensino básico e nos primeiros anos do secundário, mostrando o leque de aplicações que podem ter um impacto fortíssimo na nossa sociedade. E também estimulá-los com experiências interessantes”, defende Isabel Trancoso, que soma 42 anos de carreira num universo predominantemente masculino.
Como ilustra Ana Rute Martins, embaixadora em Portugal do Technovation Girls, o maior concurso global de empreendedorismo tecnológico para raparigas entre os 10 e os 18 anos, ainda é comum a visão de que ser programador implica passar o dia frente a um ecrã sem contactar com ninguém. “Ser ‘totó’ sem vida social nem competências interpessoais. É preciso desmistificar isto.”
“Trabalho com pessoas de Linguística, Medicina ou Psicologia. As pessoas desconhecem as inúmeras áreas de aplicação das tecnologias e isso explica a falta de miúdas [neste setor]”
A masculinização do poder
O desconhecimento é um dos combustíveis para que se perpetuem padrões enraizados há muito, como as mulheres estarem historicamente associadas ao papel de cuidadoras e os homens às engenharias e tecnologias.
Não há estatísticas que permitam recuar a 1973, ao Estado Novo, para saber como se equilibrava o binómio masculino-feminino nas TIC. Mas, entre 1999 e 2020, o número de mulheres diplomadas no ensino superior nesta área mais que duplicou (de 667 para 1 396), segundo o portal de estatísticas Pordata. Uma variação, ainda assim, não tão expressiva face ao aumento das iniciativas de sensibilização para a equidade de género e do debate público.
Entre 2011 e 2020, aliás, o número de mulheres a trabalhar e com formação no setor diminuiu de 20,1% para 19%, revela o Eurostat. Um problema português? Longe disso. Em 2020, a força de trabalho nas TIC da União Europeia era 83% masculina.
Olhando para o campo da programação, a desigualdade acentua-se. “As mulheres estão a começar a vir para o mercado das tecnologias da informação (TI) mas para áreas funcionais. De testes, por exemplo, e não técnicas, de programação”, refere João Santos, diretor executivo da Growin, consultora especializada nesta área.
Por que razão isto acontece? “Vivemos em sociedades patriarcais com milhares de anos. Sempre que surge uma trajetória a associar-se ao poder tende a masculinizar-se, e as tecnologias são uma área de trabalho liderante, que define o futuro”, diz Lina Coelho, professora de Economia na Universidade de Coimbra e investigadora na área das desigualdades entre homens e mulheres. Perdurando a fórmula atual, a equação futura das mulheres é fácil de adivinhar: “Salários menores e menos lugares de decisão e de liderança, ou seja, menos poder para mudar o destino da sociedade.”
Como se inverte este quadro? Na visão de Lina Coelho, há que intervir a vários níveis. Por um lado, a investigadora considera importante sensibilizar pais e filhos para a elevada taxa de empregabilidade nas TIC. Por outro, há que derrubar convenções sociais. “Educam-se as mulheres para trajetórias ligadas ao cuidado às pessoas, afastando-as das tecnologias. Enquanto elas brincam com bonecas, eles estão mais ligados à mecânica, aos camiões, à construção com Lego. E isto é tudo muito determinante. As pessoas alinham-se com aquilo que a sociedade espera delas”, analisa a investigadora.
Verónica Orvalho, empreendedora que cria avatares para o mercado mundial; Júlia Mota e Ana Carolina Pereira, estudantes no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL); e Maria Sottomayor, que encontrou motivação numa escola de programação sem horários nem professores, não seguiram, no entanto, o caminho previsto pela sociedade. Todas se habituaram a integrar uma minoria e a viver entre homens, realidade que não as intimidou.
“Para mim, foi sempre natural estar entre rapazes. Na Argentina, éramos quatro mulheres numa turma de cem, mas nunca senti desigualdade. Só parei para pensar no tema muito mais tarde, há três anos, quando me pediram para recomendar uma mulher que trabalhasse em tecnologias da informação e percebi que praticamente não havia”, conta a luso-argentina Verónica Orvalho, de 45 anos, que trabalhou dezoito num painel maioritariamente masculino, na IBM.
Como fundadora da Didimo, que cria humanos digitais em noventa segundos, sente que o meio empresarial também tem um papel relevante no equilíbrio entre géneros. “Penso muito no que posso fazer para aumentar o número de mulheres na área. Tento contratar mais raparigas e criei o programa Paperwings, que ajuda a financiar a frequência universitária. Fiz questão que a primeira bolsa fosse para uma rapariga. As empresas precisam de ter este tipo de iniciativas para que alguma coisa mude”, afirma.
Os números que justificam as palavras
Além das palavras dos profissionais que estudam o tema e que trabalham nas tecnologias da informação e comunicação (TIC), existem números que comprovam a desigualdade de género, em Portugal, nestas áreas. Estes são alguns:
● Dos 6 930 diplomados existentes em 2020 na área das TIC em Portugal, 1 396 eram mulheres, segundo a Pordata.
● 19% dos profissionais no setor das TIC (com formação na área) em Portugal são mulheres (dados de 2020 do Eurostat). Na Dinamarca e na Grécia, os números sobem para 33% e 31%, respetivamente. No fim da tabela está a Lituânia, com 94% de homens neste domínio.
● As mulheres ganham menos 19% que os homens no setor das TIC, segundo um estudo da investidora Atomico.
● Menos de 40% da força de trabalho de todo o mundo são mulheres, reporta o Banco Mundial.
Na senda de Ada Lovelace
Os avatares de Verónica servem sobretudo a indústria do entretenimento, mas em breve a Didimo quer entrar no retalho, moda e saúde. “Cada pessoa vai ter o seu eu digital, que vai ser a interface da comunicação do futuro, algo superpoderoso.”, assegura a engenheira. E provavelmente tem razão. O Facebook já alterou o nome para Meta (em alusão ao metaverso, o mundo digital povoado por avatares), a Zara lançou a sua primeira coleção no metaverso e prevê-se que a Nike comece a vender sapatilhas e roupa feitas em computador.
Em 2017, Verónica Orvalho conquistou o primeiro lugar na Women Startup Challenge and AI e, em 2020, foi finalista dos prémios Portuguese Women In Tech. Tal como a matemática Ada Lovelace, considerada a criadora do primeiro algoritmo da História, em 1840, continuam a existir mulheres na linha da frente da tecnologia.
O que dizem as mulheres do futuro?
Para as estudantes Maria, Júlia e Ana Carolina, a programação também entusiasma mais do que as brincadeiras com bonecas – a não ser que as bonecas sejam virtuais. Júlia Mota frequenta o primeiro ano de Engenharia Informática e de Computadores do ISEL, mas nem sempre foi simples ser uma de quatro mulheres numa turma de 38 pessoas. “Pensei que seria impossível seguir esta área. A maioria dos homens entrou com conhecimentos de informática, enquanto eu não. Eles estavam sempre um passo à minha frente, o que é bastante intimidante”, relata a aluna.
O “passo à frente” começa cedo e redunda num “grande estigma”, acredita a estudante. “É menos provável ser oferecido um videojogo a uma rapariga do que a um rapaz, o que acaba por criar um afastamento das engenharias.” Ana Carolina Pereira assina por baixo. “Nós viemos aprender ‘do zero’ e eles vêm com muitas bases”, explica a colega de turma, e aprofunda a análise: “Questiono-me várias vezes sobre o porquê de existirem áreas que chamam mais homens do que mulheres, e vice-versa. Num mundo ideal, estas coisas não deviam acontecer. Mas enquanto a maneira de pensar de quem ensina não mudar, nunca haverá igualdade de género.”
Transformar o ensino, ganhar diversidade
Verónica Orvalho, empreendedora que cria avatares para o mercado mundial; Júlia Mota e Ana Carolina Pereira, estudantes no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL); e Maria Sottomayor, que encontrou motivação numa escola de programação sem horários nem professores, não seguiram, no entanto, o caminho previsto pela sociedade. Todas se habituaram a integrar uma minoria e a viver entre homens, realidade que não as intimidou.
“Para mim, foi sempre natural estar entre rapazes. Na Argentina, éramos quatro mulheres numa turma de cem, mas nunca senti desigualdade. Só parei para pensar no tema muito mais tarde, há três anos, quando me pediram para recomendar uma mulher que trabalhasse em tecnologias da informação e percebi que praticamente não havia”, conta a luso-argentina Verónica Orvalho, de 45 anos, que trabalhou dezoito num painel maioritariamente masculino, na IBM.
Fazer evoluir o modelo de ensino é outra medida de combate à falta de raparigas e rapazes nas TIC, algo evidente para Maria Sottomayor, a jovem que sempre gostou de computadores mas que se desmotivou durante o curso de Informática de Gestão na Universidade Autónoma, até que desistiu. “Estava no segundo ano do curso quando veio a pandemia e começaram as aulas por Zoom. Desinteressei-me e comecei a procurar coisas paralelas para fazer. A partir do momento em que encontrei a (escola) 42, a ideia do outro modelo de aprendizagem tornou-se insuportável”, conta a estudante.
A 42 é uma rede de escolas de programação, fundada em França e presente em mais de 20 países, que rompe de forma radical com o convencionado. Não há aulas, horários nem professores, a escola é gratuita e o único requisito para entrar é ter, pelo menos, 17 anos. A aprendizagem acontece entre pares, pelo que cada um é professor e aluno ao mesmo tempo. Depois, é preciso passar os diferentes níveis e desafios na área do código.
Mafalda Sousa Guedes, responsável pela comunicação da escola em Lisboa, elenca cinco perfis de pessoas que frequentam o edifício e os 200 computadores da 42: “Pessoas que seguiram carreiras com pouca saída profissional, pessoas que nunca se encaixaram no modelo de ensino, pessoas que detestam o que fazem, outras com carreiras estáveis mas que querem ter uma base tecnológica, e os chamados geeks. Vêm das áreas da pastelaria, hotelaria, são médicos, polícias, militares, engenheiros, tudo.” Também há mulheres, claro, mas são 19%.
Na Arménia funciona a única escola em que cerca de 50% dos alunos são do sexo feminino. Mafalda aponta duas razões possíveis: em 2011 abriu o TUM, um centro de formação em tecnologias onde muitas mulheres abriram caminho; em 2020, ano da abertura da 42, o conflito com o Azerbaijão reacendeu, levando muitos homens com ele.
Resta uma pergunta: terão os homens uma propensão natural para computadores e programação? “A programação é uma área que, acima de tudo, testa as capacidades de resiliência, de resolver problemas e de lidar com a frustração”, afirma Mafalda Sousa Guedes. Não consta, na ciência, que alguma destas capacidades esteja mais desenvolvida nos homens ou nas mulheres.
Happy Code: programar para o desenvolvimento humano
Uma das formas de atrair mais mulheres para a programação é começar pelas crianças. É isso que pretende fazer a Happy Code Portugal, uma escola de tecnologia e programação parceira da Associação Mutualista Montepio que também atua junto de instituições públicas e privadas, incentivando à aprendizagem da tecnologia e programação.
Em paralelo, a Happy Code é, este ano, embaixadora do Technovation Girls, o maior programa de educação tecnológica do mundo, que tem como meta tornar raparigas dos 8 aos 18 anos “líderes, criadoras e confiantes” nas ciências, tecnologia, engenharia, artes e matemática (STEAM, na sigla em inglês). “As participantes trabalham em equipa selecionando um problema na comunidade e criando uma aplicação para dispositivos móveis ou um projeto de inteligência artificial para ajudar a resolvê-lo”, refere Ana Rute Martins, embaixadora do programa em Portugal e diretora pedagógica da Happy Code.
Assim, o ensino de programação surge “não como um fim em si mesmo, mas como um meio para desenvolver diversas competências, desde o raciocínio lógico à criatividade”. O grande objetivo é “contribuir para a formação de crianças e jovens mais resilientes, capazes de questionar o mundo e de intervir de um modo positivo na sua transformação”, continua.
Quanto ao desequilíbrio de géneros nas TIC, a profissional acredita que, mais importante do que atingir uma proporção de 50-50, é “preciso existir uma real liberdade de acesso, de escolha e de usufruto” no campo das tecnologias. Em suma, até poderá haver interesses genuinamente diferentes entre géneros, mas a igualdade de oportunidades tem de ser garantida.
Na Happy Code, entidade parceira da Associação Montepio, aprende-se a programar desde tenra idade