Os prédios Montepio que trouxeram modernismo à Lisboa salazarenta

Os prédios Montepio que trouxeram modernismo à Lisboa salazarenta
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Fotografia de Rodrigo Cabrita e DR
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ão um misto de betão, madeira, pedra, ferro e cerâmica, mas, animados por Jorge e João Carlos Segurado, os “Blocos Amarelos” de Alvalade foram um redemoinho numa Lisboa controlada, de habitação escassa e onde se proibiam prédios altos. Esta é a história de como uma encomenda do Montepio trouxe um ímpeto de futuro à cidade.

Se nas fotografias da Lisboa de 1963 se pudessem ver as cores, os oito edifícios amarelos da Avenida do Brasil, desenhados por Jorge e João Carlos Segurado (pai e filho) para o Montepio Geral, fariam parar todos os olhares. Em 1963, Lisboa era uma cidade calma, com poucos sinais de modernidade e uma população reprimida mas em crescimento, no embalo de um novo êxodo rural. Paulo Rocha mostrou-o bem em Verdes Anos, filme que deu nome ao álbum de Carlos Paredes e que conta a história de Júlio, um rapaz que se desloca da província para Lisboa e arranja trabalho como sapateiro numa cave de Alvalade, o bairro que via nascer, no mesmo ano, os famosos “Blocos Amarelos”.

Estávamos em plena Guerra Colonial, no pico das prisões do Estado Novo, mas uma parte do país tentava libertar-se. Verdes Anos era o símbolo do Novo Cinema, que rompia com a linguagem patriótica vigente, e, na arquitetura, nasciam impulsos de um modernismo já veloz no resto da Europa. Havia muito a dizer além do que o Estado queria que fosse dito.

O período entre as décadas de 1930 e 1960, ainda assim, foi “um dos mais notáveis de produção de habitação e de urbanização”, constata Fernando Santo, administrador da Montepio Gestão de Activos Imobiliários. Com Duarte Pacheco como ministro das Obras Públicas de Salazar (ao mesmo tempo que presidia à Câmara Municipal de Lisboa), começou a surgir “a preocupação de alojar os funcionários públicos e de adequar a habitação aos rendimentos dos portugueses”, explica Fernando Santo. Terrenos rústicos foram urbanizados segundo planos definidos pelo Estado e deram origem a bairros como o de Alvalade, Olivais, Chelas ou Carnide, após a venda dos lotes a construtores e a diversas entidades que promoveram a construção dos edifícios “começaram a desenhar-se bairros a regra e esquadro e a vender-se propriedades a diferentes promotores em leilão”. Foi aqui que entrou, com fulgor, o Montepio Geral, “um dos principais dinamizadores da construção de imóveis em Portugal” entre as décadas de 1930 e 1960, grande parte dos quais destinados ao arrendamento. “A aposta foi nitidamente na promoção da habitação”, reforça o engenheiro.

Nos anos de 1960, havia necessidade e vontade de construir um país novo. “Procurava-se ser diferenciador”, nota Fernando Santo, salientando o exemplo irreverente de Alvalade na fotografia a preto e branco de Lisboa. “A construção por parte do Montepio, em diferentes artérias do bairro de Alvalade, de oito edifícios com um total de 156 apartamentos, foi, sem dúvida, a mais emblemática.”

Nesta vontade de fazer diferente ressaltou o nome de Jorge Segurado, autor de obras icónicas como a Casa da Moeda, que vincou o seu traço de vanguarda neste conjunto de oito edifícios, separados por pequenas praças, da Avenida do Brasil. Para Fernando Santo, os “Blocos Amarelos” surgiram de “uma preocupação pública, mas deram à cidade uma forma de fazer diferente da do Estado”. Surgiram como uma “obra poderosamente moderna” e “um exemplo dos mais qualificados espaços de habitação plurifamiliar” desta zona da cidade, como escreveu José Manuel Fernandes. “O conjunto da Avenida do Brasil assinala também, de algum modo, o culminar de uma obra, de uma vida e de uma atitude profissional pautada pela invenção, pela seriedade e pela capacidade de concretização”, remata o autor do livro Arquitectos Segurado.

Amarelos e incomparáveis

Maria Manuela Coelho, Associada Montepio e uma das primeiras moradoras dos “Blocos Amarelos”, recorda-se bem de quando visitou pela primeira vez o apartamento. “Não se comparava a nada do que existia” em Lisboa. O marido, formado em Arquitetura, tinha “sensibilidade” e “ficou logo encantado com a casa”. A forma como estava dividida, como do hall se chegava à zona social através de um chão de madeira Sucupira, como as janelas recebiam graciosamente a luz do exterior, como os quartos se recatavam no fundo do apartamento, tudo havia sido pensado ao pormenor. “E a casa de banho revestida a mármore?”, salienta Maria Manuela, não esquecendo a varanda, onde criou um pequeno jardim que hoje preenche os dias de reforma desta ex-decoradora floral do Hotel Ritz.

“Tínhamos 26 anos. Casámos em 1963 e viemos para cá. Foi uma decisão rápida. Naquela altura, as casas eram muito pequenas ou, se fossem grandes, tinham demasiadas divisões”, descreve a moradora. A habitação refletia o desenho-padrão das famílias lisboetas. Na década de 1960, o número médio de filhos por mulher era de 3,2 (contra os 1,34 atuais).

O próprio Jorge Segurado chegou a viver num dos blocos que desenhou. António Segurado, o mais novo de 11 sobrinhos, costumava visitá-lo e ver os seus desenhos abertos em cima da mesa do atelier. “Tinha 16 anos quando lá entrei pela primeira vez”, recorda o artista. “Havia um perfume novo, a casa tinha um ar atraente e era uma lufada de ar fresco em relação ao que existia à época. A própria orgânica das janelas foi muito bem pensada. Tem ritmo, uma melodia própria.”

Espaço para viver e para pensar

Para o terreno onde se ergueram os “Blocos Amarelos” chegou a estar planeado um conjunto de moradias com um máximo de dois pisos, conforme sugeriam as normas do Estado Novo. Mas Jorge Segurado e o filho, João Carlos, quiseram trazer para a cidade outro fôlego e também uma nova forma de olhar para ela. No lugar de casas unifamiliares que representassem a identidade portuguesa de forma conservadora, desenharam prédios de sete andares, com elevadores, pilotis que os seguravam num ato de elegância e de afirmação modernista, revestimentos cerâmicos de cores vibrantes (o amarelo por fora e o azul-turquesa por dentro) e, como destacou Maria Manuela, dimensões invulgares para o padrão lisboeta. Os apartamentos maiores têm mais de 100 metros quadrados, um quarto e casa de banho para a empregada interna (comum à época) e atingem o seu auge num salão com uma área superior a 35 metros quadrados.

Mas eram estes apartamentos de alta qualidade acessíveis à população? “Para aquela altura o valor era alto: 3200 escudos de renda [em 1974, o primeiro ano de salário mínimo no país, o valor fixado era de 3300 escudos]. Mas existia uma contrapartida muito importante: não havia atualização de rendas, o que fez com que, passados uns anos, o valor se tornasse bastante razoável”, recorda Luís Barbosa, morador dos “Blocos Amarelos” desde 1963.

Como aconteceu com Maria Manuela, também para Luís Barbosa a decisão de ficar foi simples. “Tinha 30 anos e dois filhos. Vim ver a casa com um amigo que estava interessado nos novos prédios de Alvalade. Mas acabei por vir para cá primeiro do que ele.” A vida fez-se simples. Luís Barbosa trabalhava na Companhia de Seguros Império, ia todos os dias “de carro, tranquilamente, para a Rua Garrett. Estacionava-se com facilidade, eram outros tempos”, recorda.

A família cresceu na Avenida do Brasil e os três filhos tiveram a oportunidade de vivenciar um espírito de bairro num lugar moderno da cidade. “Éramos todos mais ou menos da mesma geração, com filhos pequenos, e os pátios ajudavam a que as crianças brincassem juntas.” Entretanto, Luís Barbosa ajudou a fundar o CDS, foi ministro da Habitação e Obras Públicas, administrou a Cimpor e presidiu à Cruz Vermelha, entre outras missões, como a presidência do Conselho de Fixação de Remunerações do Montepio. A vida foi mudando, os filhos cresceram, a casa manteve o seu lugar.

75% dos apartamentos que a Associação Montepio promove no mercado de arrendamento foram construídos entre 1930 e 1968

200 frações foram promovidas para venda aos associados, e 400 para arrendamento, durante aqueles trinta e oito anos

1045 imóveis da Associação Montepio compõem o seu património no país

16 edifícios, com um total de 218 apartamentos, foram construídos pelo Montepio em Alvalade e na Avenida de Roma entre 1948 e 1963, constituindo um dos investimentos imobiliários mais emblemáticos da Associação

30 a 40 apartamentos são reabilitados pela Associação todos os anos

Mudar de vida: uma oportunidade para os associados Montepio

Até 1975, apenas os associados Montepio podiam candidatar-se a arrendar um apartamento que fosse propriedade da instituição. Com o 25 de Abril, as regras mudaram e também os funcionários da casa adquiriram este direito. Abriu-se, assim, uma “oportunidade única”, qualifica Narciso Videira, reformado do Montepio a viver nos “Blocos Amarelos” desde 1975. “Quando viemos para cá, os moradores eram de um estrato social elevado, desde cirurgiões, banqueiros, diplomatas, empresários, gestores… Hoje, posso dizer que viver aqui é um privilégio. Foi, sem dúvida, uma das melhores coisas que me aconteceram na vida.” Narciso Videira deslocava-se diariamente para trabalhar na sede do Montepio Geral, na Rua do Ouro, em plena baixa lisboeta. Antes de se mudar para Alvalade, vivia nos arredores da cidade, tal como uma fatia esmagadora da população.

Ao mesmo tempo, nos anos 1970, o crédito à habitação era uma irrealidade para a época. Comprar casa implicava ter economias ou heranças. Era o mercado do arrendamento que governava e, neste contexto, os “Blocos Amarelos” conferiram-lhe o direito à cidade. A história é similar à de António Mendes de Almeida, seu colega na rua do Ouro, onde era administrativo na secção de hipotecas. “Vivia na Buraca, numa casa pequena. Tinha uma filha e pensávamos em aumentar a família, queríamos uma casa maior. Quando apareceu este apartamento, foi uma oportunidade. A casa era tão grande que a minha filha andava lá dentro de triciclo!” Nos edifícios amarelos da Avenida do Brasil, Mendes de Almeida sentiu outro tipo de conforto. A habitação deixou de ser uma preocupação latente. “A maioria das casas em Lisboa não tinha esta qualidade e as que tinham não eram acessíveis aos nossos rendimentos. A minha vida mudou”, explica o morador.

A diferenciação no imobiliário

“No pós-25 de Abril, o mercado do arrendamento praticamente terminou. Tínhamos, então, 48% de habitação para arrendamento. Agora, temos 21%”, salienta Fernando Santo, avançando na cronologia. Hoje, a procura está muito mais focada na compra, moldada pela facilidade do crédito, e o setor da construção tem uma velocidade incomparável à do passado. No entanto, o responsável acredita que as transformações sociais do presente trarão mudanças importantes ao mercado da habitação. “Com os empregos mais instáveis, maior mobilidade profissional, maior número de divórcios e o aumento do número de famílias monoparentais, achamos que faz sentido voltar a pensar no arrendamento.

Foi por isso que, em 2015, a Associação Mutualista começou a retomar a política das décadas de 1930 a 1960, com a compra dos terrenos da Praça de Espanha, em Lisboa.” Ao mesmo tempo, a Associação Montepio pretende, mais uma vez, responder a um problema social: a escassez de oferta no arrendamento. Mas essa resposta reveste-se sempre de uma prioridade: a diferenciação. “Quando o Montepio pensa projetar edifícios em Lisboa, no Porto e noutras zonas do país, quer diferenciar-se de uma certa matriz. Tal como fez com os ‘Blocos Amarelos’ na década de 1960”, conclui Fernando Santo.

O que torna os “Blocos Amarelos” especiais?

  • Exposição solar – Na proposta original dos edifícios, feita por Faria da Costa em 1945, constavam moradias unifamiliares orientadas a norte. Jorge e João Carlos Segurado (pai e filho) transformaram o projeto para uma linha de oito blocos de sete pisos, com as fachadas voltadas para nascente e poente. A boa exposição solar era um princípio basilar da Carta de Atenas, documento fundamental do urbanismo, publicado por um dos arquitetos mais influentes do século XX, Le Corbusier.
  • Cerâmica de cores vibrantes – O azulejo amarelo e minimalista contrastava com o que se usava à época. No interior, a pastilha de um azul vibrante confere importância à geometria, à cor e ao ritmo.
  • Materiais nobres – Os materiais utilizados, como as madeiras nas áreas comuns do prédio e no chão dos apartamentos, e os mármores das casas de banho, são diferenciadores.
  • Grandes áreas – As áreas de cada assoalhada – e dos apartamentos – eram invulgares na Lisboa de 1960. Os apartamentos maiores, com quarto e casa de banho para a empregada interna, tinham mais de 100 metros quadrados de área útil.
  • Terraço no lugar do telhado – Os topos dos edifícios foram pensados como espaços de arrecadação e para secar a roupa, substituindo a típica cobertura de telha.
  • Sentido de comunidade – As praças entre cada prédio permitem a convivência entre moradores, num misto de zonas verdes e comerciais. Num pensamento moderno de urbanismo, o conjunto dos oito blocos representa uma criação estruturada do sentido de bairro.
  • Desenho diferenciador – Os pilares (pilotis) dos prédios são dos elementos visuais mais marcantes da obra. Além de conferirem uma estética moderna, criam zonas cobertas para que os moradores possam circular protegidos da chuva entre blocos.
  • Funcionalidade – A existência de um parque de estacionamento junto aos blocos, pensado para os moradores, revela o pensamento integrado e funcional dos Segurado neste projeto. O metropolitano apenas chegaria a Alvalade em 1972, nove anos após a conclusão dos edifícios.

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Segurado e a vontade de ser livre

Jorge Segurado (1898-1990) projetou diversas obras para o Estado Novo, como a Casa da Moeda ou os estúdios da Tóbis Portuguesa, mas consta que a sua alma era vanguardista, inspirada por muitas viagens pela Europa. “Tive a sorte de, em 1931, ir a Berlim ver a Bauhaus”, salientou em 1989 numa entrevista ao Jornal dos Arquitetos (JA), citada no livro Arquitectos Segurado (2011, Imprensa Nacional-Casa da Moeda), de José Manuel Fernandes.

Há um episódio relatado à Revista Montepio por Pedro Rogado, bisneto de Jorge Segurado e um dos 14 arquitetos vivos da família, que elucida o jogo constante entre a sobrevivência e a busca de liberdade criativa durante o regime de Salazar. “A minha mãe conta que, quando ele aceitou fazer a Casa da Moeda [anos 1930], a minha bisavó ficou furiosa por ele trabalhar para os fascistas e trancou-se no quarto. Ele foi para o atelier e começou a desenhar a porta de entrada dos operários e a porta dos escritórios. O que ele fez foi monumentalizar a entrada dos trabalhadores e criar uma entrada de 2,20 metros para aqueles que, no fundo, eram os patrões. Quando terminou, meteu o desenho debaixo da porta do quarto da minha bisavó e ela lá saiu.”

Sem a mão direta da Censura, os “Blocos Amarelos” terão surgido como uma oportunidade de criação. “Posso estar enganado, mas acho que o problema do meu bisavô era que ele queria fazer arquitetura modernista e não conseguia. E os blocos do Montepio parecem ter sido uma possibilidade de libertação dessa castração”, refere Pedro Rogado.

Um dos vários projetos não concretizados por Jorge Segurado sustenta, com alguma força, esta tese. Com algum arrojo, o arquiteto propôs ao governo a construção de um conjunto de 100 habitações para 100 artistas e intelectuais, em Lisboa. “Consegui entusiasmar o Duarte Pacheco”, confessou Segurado, na entrevista ao JA, prosseguindo: “Resolvi fazer uma apresentação ao chefe do governo, que era Salazar. Passados uns dias, deu-me a resposta. Não consentia que eu fizesse a construção em altura (…) e alegava os tumultos que tinha havido socialmente em Viena d’ Austria, justamente por causa do Karl Marx Hof.” Karl Marx Hof é, ainda hoje, um dos edifícios residenciais mais compridos do mundo (tem mais de um quilómetro de comprimento), um modelo de habitação social e símbolo político da Áustria social-democrata de inspiração marxista.

Optar por uma linguagem progressista era ir contra a norma veiculada pelo Estado Novo, que reivindicava uma arquitetura conservadora, decorativa, que bem representasse os ideais supremos de Deus, Pátria e Família. Mas existia uma ânsia de liberdade e, nos cafés e nos espaços de trabalho, Segurado acreditava estar a criar linguagens necessárias para o país. “A arquitectura moderna em Portugal nasceu na Brasileira do Chiado e no meu atelier”, declarou em 1989 ao JA. Jorge Segurado pertenceu ao chamado “grupo dos cinco”, fundamentais para a arquitetura moderna nacional, e privou com figuras como Almada Negreiros, Branquinho da Fonseca ou Mário Eloy, em busca de novos fôlegos para o país.

A Revista Montepio agradece a colaboração do Arquivo Municipal de Lisboa (AML)

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