asa, carro, filhos, viagens, trabalho remoto. Quais as aspirações dos jovens de hoje? Assistimos a uma mudança de perfis ou, por outro lado, a uma menor liberdade de escolha? Eis os ziguezagues das gerações Z e millennial, entre o desejo de uma vida livre e flexível e a vontade de ter casa e família.
Em apenas uma semana, Marta Aguilar, de 30 anos, vendeu o carro e deixou a casa arrendada. Desfez-se dos móveis numa plataforma online e das roupas através de outra. Empacotou talheres, pratos e copos, que guardou na garagem da mãe. “Senti-me livre”, conta numa videochamada desde a ilha do Sal, onde está em trabalho remoto há algumas semanas, depois de uma primeira experiência como nómada digital no mesmo país, em outubro.
Quando viu Marta a desfazer-se de quase tudo o que tinha – o computador foi o artigo de maior valor com que ficou –, a mãe estranhou. “Para a geração dela, faz muita confusão. Mas, ao mesmo tempo, chama-nos corajosos, porque ela não teria coragem para fazer isto na nossa idade.”
Marta nunca teve uma experiência profissional longa num escritório físico. Foi assistente de bordo e depois, já noutro emprego, surgiram a pandemia e as reuniões à distância. Agora, trabalha em vendas num regime 100% remoto. “Não temos escritório, podemos trabalhar onde quisermos.” Todos os anos, ela e os colegas recebem mil euros para gastar no trabalho à distância. “Há quem gaste o dinheiro em espaços de cowork, com outros colegas ou sozinho. Eu vim para Cabo Verde.”
Aos 30 anos, Marta não é exemplo único na sua geração deste sentimento de “liberdade” e “flexibilidade”. De acordo com o psicólogo Tiago Pereira, particularmente em Portugal, a geração Z (que engloba os nascidos entre a segunda metade da década de 1990 e os anos de 2010) e a que a antecedeu, a millennial, olham “para os desafios que se colocam no presente e para o futuro sem ter uma ideia de que tudo melhorará”. Para alguns, descreve o membro da direção da Ordem dos Psicólogos, pode haver uma sensação de “desânimo e desesperança relativamente ao futuro”. A isto poderá estar associada a negação de ideais outrora basilares, como ter casa própria, um carro ou constituir família.
Carpe diem à força
Marta Aguilar não é uma pessimista – pelo contrário – e prevê cumprir todos esses objetivos. Percebeu, contudo, que não tem de ser para já. “Tenho a perspetiva de comprar uma casa, mas, para a minha geração, isso é um desafio. Ou temos os nossos pais a ajudarem-nos com a entrada, ou comprar uma casa em Lisboa é impensável.” Por outro lado, não sente urgência em cumprir este objetivo. “Os meus pais tinham 26 anos na primeira [casa que adquiriram] e era suposto [ser assim], fazia parte do percurso: comprarem a casa e constituírem família.” Hoje é diferente e os planos de estabilidade são adiados. “Já vivi fora, fiz Erasmus um ano e não há como Portugal. Sem dúvida que quero voltar quando for mais velha. Não me vejo noutro país. Mas [agora], com os salários que temos versus o custo de vida, não é comportável”, refere. Em Cabo Verde, reduziu para metade a renda que pagaria em Lisboa, onde sabe que terá sempre um quarto em casa da mãe se for necessário voltar.
Para a investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Romana Xerez, não é que os mais jovens não queiram ter casa. “Os millennials [nascidos entre 1981 e o final dos anos 1990] também partilham o desejo de ter casa própria, mas as condições agravaram-se e não conseguem. O acesso ao arrendamento tornou-se um problema devido ao preço das rendas e muitos jovens permanecem em casa dos pais porque não têm alternativa”, diz. Segundo dados divulgados no final de 2022 pelo Banco de Portugal, apenas 10% dos 1,4 milhões de contratos de crédito à habitação em vigor são de jovens até aos 35 anos. Romana Xerez desenvolveu um estudo para a Fundação Gulbenkian sobre habitação própria em Portugal numa perspetiva intergeracional que, através de dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), também coligiu informações relevantes: entre os millennials com menos de 30 anos, a percentagem de proprietários com hipoteca é baixa. Ainda assim, 88% dos jovens demonstraram ter vontade de ter a sua casa dentro de cinco a nove anos.
“Várias causas impedem os jovens de comprar casa, desde as dificuldades económicas e o agravamento da situação financeira [do país] aos elevados preços da habitação. Nos últimos anos, os preços das casas aumentaram mais rapidamente do que os rendimentos das famílias”, esclarece a investigadora. Um quadro bem diferente do da juventude dos pais de Marta, já que, nas últimas três décadas do século XX, a capacidade de acesso a habitação própria aumentou e desenvolveram-se políticas públicas propícias ao sonho de propriedade.
Hoje, “a ideia de comprar casa é uma realidade bastante distante”, refere Tomás Desidério, de 25 anos. “A maioria dos meus colegas entrou no mercado de trabalho com estágio profissional do IEFP, que são cerca de 750 euros. E é difícil nos primeiros tempos haver uma atualização salarial. Se calhar, perdemos a ideia de ser possível comprar casa e é por isso que tenho tantos colegas a partilhar casa com amigos ou namorados.” Ou, por outro lado, ficam até mais tarde em casa dos pais. Ainda assim, Tomás também quer ter casa própria, “um dia”.
Ter filhos com a mala às costas
Ainda assim, nem tudo se justifica com a conjuntura económica. Há quem prefira não ter casa ou, indo mais longe, contrariar a cultura materialista. “A partir do momento em que se compra uma casa, criam-se raízes. E os ‘miúdos’ vão protelando” essa decisão, diz a coach parental Magda Gomes Dias. O mesmo acontece quanto à necessidade de ter uma ocupação definitiva. “Os empregos não são para a vida, mas, ao mesmo tempo, quando se começa a querer ter alguma estabilidade, a criar uma família, [isso] convida a que os pais criem raízes porque precisam dessa estabilidade para poderem educar.” É então que, para muitos, surge o dilema, ao qual o mundo contemporâneo ofereceu novas respostas.
A poucas semanas de ser pai, Gonçalo Hall, de 35 anos, não prevê deixar a vida de nómada digital que mantém há já cinco anos – e que o levou a criar a NomadX e a fundar a DNA (Digital Nomad Association Portugal). Parte do ano está em Ponta do Sol, na Madeira, onde durante a pandemia plantou as sementes da Nomads Village, uma comunidade de nómadas digitais maioritariamente europeus. O resto do tempo é passado em Bali, na Indonésia, onde se iniciou neste estilo de vida, ou no Brasil.
“Começamos a perceber os destinos que mais se adaptam a nós”, conta numa chamada por WhatsApp desde a ilha da Madeira. Gonçalo procura locais onde possa jogar voleibol de praia ou fazer crossfit, mas não há dois nómadas digitais com o mesmo perfil. Tem um amigo com seis filhos que prefere estar com a família entre Malta e a Bulgária. “Há imensas famílias que têm este estilo de vida”, diz Gonçalo, explicando que os nómadas digitais defendem “uma educação mais próxima, apoiada em escolas não tradicionais”, como existem em Bali e também em Portugal.
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Quando o filho nascer, Gonçalo poderá trabalhar a partir de casa e ser um pai presente – e essa casa será onde quiser. “O nomadismo é um movimento de liberdade, de rejeição do status quo. Não queremos ter um sítio fixo, não queremos comprar casa ou carro. Quando consumimos, consumimos a experiência, o conhecimento de diversas culturas.”
Gonçalo prevê, assim, que o fim do consumo desenfreado seja uma das tendências criadas por esta comunidade. “Tudo o que temos cabe numa mala. Não precisamos de coisas para sermos felizes. Vejo os nómadas digitais a comprarem coisas de qualidade em vez de comprarem coisas todos os dias”, relata. Ainda assim, o nomadismo digital é uma prática minoritária – apenas 1% dos trabalhadores à distância são nómadas –, pelo que, apesar de retratarem um grupo emergente, o seu impacto no modo de vida das populações poderá ser diminuto.
Aproveitar e refletir antes de serem pais
Se o nomadismo representa uma minoria, ter filhos depois dos 30 não. Mesmo fazendo escolhas mais tradicionais em termos profissionais, as portuguesas têm filhos cada vez mais tarde. Em 1988, a média de idade com que as mulheres tinham o primeiro filho rondava os 23,9 anos. Em 2021, o primeiro filho nascia quando as mulheres, em média, tinham 30,9 anos, segundo o site Pordata.
Marta Aguilar assume que a fasquia dos 30 anos começa a trazer uma nova visão sobre o futuro. Os seus amigos, por exemplo, adiam a ideia de ter filhos por mais um par de anos para “aproveitarem” antes. Ela também quer constituir família daqui a algum tempo – e já bastante mais tarde do que os seus pais –, mas confessa que vai tendo as suas hesitações, sobretudo desde o advento da guerra. “Preocupa-me bastante.”
As alterações climáticas, por outro lado, são o seu maior temor. “Acho que já passou pela cabeça de toda a gente a pergunta ‘até que ponto quero pôr um filho neste mundo?’ Nem sabemos se vamos ter mundo daqui a pouco tempo”, lamenta.
Ainda assim, os portugueses são quem mais assume este desejo. Segundo um estudo da farmacêutica Merck junto dos millennials e da geração Z de dez países europeus, 72% disseram querer ter filhos, quando em Portugal essa percentagem sobe para 82%.
Reassumir o controlo e lutar por objetivos
Perante uma instabilidade económica constante, mudanças abruptas e um horizonte pautado pela crise climática, viverão os jovens de hoje com medo do futuro? A psicóloga Bárbara Ramos Dias acredita que não. Estão antes a “aprender a lidar com a frustração” e a “lidar com mudanças”, refere.
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“Era uma geração que achava ter tudo controlado e que tudo era imediato. Agora, está a aprender que nada é certo”, afirma. São forçados a lidar com as frustrações decorrentes da pandemia, com a pressão das alterações climáticas, com situações como a guerra na Ucrânia.
A todas estas questões somam-se a aceleração do mundo contemporâneo. Como constata o psicólogo Tiago Pereira, as “mudanças rápidas, a incerteza e a imprevisibilidade” marcam o ritmo atual. Por outro lado, as redes sociais obrigam os jovens a “parecer sempre bem, felizes”.
“É um agente de stress significativo”, descreve. “Quando não estamos tão bem e são expostas determinadas vulnerabilidades, somos discriminados ou postos de parte.” Tudo isto contribui para a “imprevisibilidade e falta de controlo”, um domínio que o ser humano procura em permanência. Mesmo quem opta por um estilo de vida mais nómada está a “tentar garantir algum controlo a partir desse contexto”, acredita o responsável da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Para a coach Magda Gomes Dias, o essencial é que as gerações mais novas não se mantenham alheadas. “É grave não terem coisas pelas quais podem lutar”, explica. Sem elas, torna-se mais difícil ver o futuro.
Menos bens, mais liberdade
Se, por um lado, a maior instabilidade do mercado de trabalho e as restrições financeiras podem colocar travões a sonhos como ter uma casa ou constituir uma família, por outro, quanto menores forem os encargos na vida de um jovem, maior é a liberdade de tomar decisões a nível individual. Foi o que verificou Tomás Desidério que, em meados de 2022, decidiu deixar o emprego na área da comunicação para cuidar de si. “Estava a chegar a um ponto em que não me sentia saudável física e psicologicamente. Ganhei algum peso, sentia-me frustrado. Estando a trabalhar, só iria piorar a minha saúde psicológica. Mas sei que é um luxo poder fazer isto.”
O luxo é ter apoio familiar e ausência de encargos ou responsabilidades, o que lhe “permite não ter medo” nem sentir-se obrigado a ficar num emprego para a vida. “Não tenho filhos, nem preciso de me preocupar com a educação ou alimentação deles.” No entanto, “é uma fase, não vai ser assim para sempre”. Para já, está numa curta licença sabática e satisfeito por ter tomado essa decisão. “Estes dois meses serviram para melhorar a minha saúde psicológica e já vejo resultados”, explica.
Como em todas as hipóteses lançadas para perceber a história das sociedades, também nesta não há certezas. Apenas a de que algumas atitudes estão a mudar. “Há algumas décadas”, conclui o psicólogo Tiago Pereira, “a ideia era de contínuo bem-estar, qualidade de vida, evolução. E isso está desafiado”.