Lindocas Bila: “Em Moçambique só 40% das raparigas entram na escola”
Lindocas Bila, 25 anos, faz parte do 1% de raparigas moçambicanas que conseguem entrar no ensino universitário. O seu percurso é invulgar num país em que o natural é que as jovens abandonem a escola, casem e tenham filhos precocemente, tornando-se, por isso, economicamente dependentes. Mas a jovem quer mudar este cenário e, para isso, integrou o projeto Girl Move. Fique a conhecer a sua história.
Está a completar a última fase da Academia Girl Move. Fale-nos do seu percurso até aqui.
Nasci na província de Maputo, mas o meu pai é militar e, no meu país, os militares são nómadas, não têm um sitio fixo para viver. Comecei o ensino primário em Cabo Delgado, depois terminei em Maputo, onde fiquei até ao 12º ano. Tinha de escolher que curso seguir, acabei por optar por medicina dentária. Saí da minha província e fui estudar em Nampula, que é a terceira cidade maior de Moçambique.
Porque escolheu esse curso?
Porque os meus pais me induziram. Era um curso novo no país e que teria acesso direto ao mercado. No início não gostei, porque não me dizia nada. Eu tinha na mente que medicina dentária era só lidar com a limpeza dos dentes. Quando passei da fase teórica para a fase prática, acabei por gostar do curso, porque foi quando eu percebi que a saúde geral do indivíduo começa na boca. Fui gostando mais, investigando e fazendo alguns trabalhos na comunidade, incentivando as pessoas a cuidarem da sua saúde oral para evitar doenças graves. As pessoas da minha comunidade só se dirigem a um centro de saúde quando já têm muitas dores.
E depois?
Depois, o meu país entrou em crise. O Sistema de Saúde de Moçambique depende 60% do financiamento externo, e com a crise não havia doares externos, pelo que acabaram por fechar a parte da saúde oral. Os médicos dentistas não tinham uma absorção direta pelo Estado, ou seja, foram formando médicos, mas não entravam diretamente para o Estado. Só havia dois ou três concursos públicos.
Porque é que isso aconteceu?
A saúde oral não faz parte das prioridades em Moçambique. Há doenças prioritárias como a malária, paludismo, HIV. Moçambique está preocupado em focar-se nas prioridades e a medicina dentária ficou de lado. Fazem-se concursos, mas existem muitos recém-formados. Acabamos por ficar muito tempo à espera de abertura de concurso.
Como chegou ao Girl Move?
Comecei a ficar frustrada. Fui para Maputo e vi a vaga da Girl Move. Vi o título “És mulher para ser líder?” e aquilo motivou-me. Eu queria muito fazer alguma coisa que mudasse a forma da minha família e da comunidade verem a medicina dentária, mas não me achava capaz de fazer isso. Não me via como uma pessoa líder, porque era tão envergonhada e tão tímida. Então vi aquele título e disse: “eu quero isto”. E candidatei-me. Eramos 700 candidatas e fomos apuradas 31 recém-formadas. E tornei-me numa Girl Mover.
O que é uma Girl Mover?
Nós somos mentoras. O Girl Move é um programa que trabalha com mulheres e tem uma metodologia de mentoria. Nós somos as Girl Movers, que damos apoio às mulheres que ainda estão a estudar na universidade, no segundo e terceiro ano. Essas, por sua vez, dão mentoria às Mwarusis (em Nampula, significa donzela), que são as raparigas que estão a fazer a 7ª classe, que têm dos 12 aos 14 anos.
Nós somos fontes de inspiração para essas raparigas, porque estamos inseridas nessa comunidade e passamos por diversos desafios que essas raparigas passam, mas nem por isso deixamos de estudar. Estudamos e conseguimos vencer. Incentivamos e damos essa inspiração para as raparigas continuarem a estudar.
As taxas de escolaridade entre as raparigas são reduzidas…
Sim, são. Em Moçambique, 40% das raparigas conseguem entrar na escola, mas só 10% conseguem fazer o ensino secundário e 1% consegue fazer o ensino superior. Estas taxas são reduzidas porque 60% da população vive com dificuldades financeiras, pobreza, com menos de 2 dólares por dia. Os pais, como não estudaram, acham que estudar é uma coisa que não vai trazer benefícios às raparigas, pelo que não as incentivam a continuar a estudar. Elas optam por trabalhar nas machambas, ficar em casa ou casar muito cedo. Tentamos fazer esse trabalho, para tentar que as raparigas fiquem nas escolas e evitem esses casamentos prematuros e gravidezes precoces.
Essas jovens raparigas, que têm dificuldades financeiras, são um dos principais desafios em Moçambique?
Sim. Os meus pais não têm muitas condições, mas nem por isso deixaram de me dar força e apoio para estudar. É isso que nós damos a essas meninas. Nós damos apoio escolar, ensinamos a ter competências para a vida e a procurar não estender a mão. Não pedir para receber, mas também procurar desenvolver capacidades, para realizar coisas por si só. Ensinamos essas raparigas a escrever, a ler e damos educação financeira. Muitas fazem negócios informais, como a venda de produtos feitos por elas. Nós ensinamos que devem poupar esse dinheiro. É um desafio.
Não tanto as raparigas, mas muitas vezes os pais devem ser um impedimento a esse desenvolvimento.
Sim, os encarregados de educação não facilitam. Na zona Norte, muitas raparigas são induzidas a casar muito cedo, em troca de bens materiais, alimento. Os pais têm essa parte, de não incentivar. Por vezes já têm um marido escolhido e dão a menina em troca de bens. Não dão importância. Nós temos tido desafios, porque temos de mudar a mentalidade da miúda, mas também da pessoa que está com ela. E muitas vezes, como somos mulheres e vistas como o elo fraco, os primeiros meses são de grandes desafios. Mas depois conseguimos convencer as pessoas.
A Lindocas está na última fase da Academia Girl Move. Quando regressar a Moçambique, o que gostaria de realizar?
Tenho uma missão: fazer com que as pessoas valorizem a saúde oral. Quero levar a medicina dentária até às comunidades mais recônditas que não sabem a importância de lavar os dentes. Por isso, tenho a ideia de criar uma clínica dentária móvel e fazer com que as comunidades que nem sequer conhecem a escova de dentes possam conhecer o significado de uma escova. Não só como objeto físico, mas também a importância que tem para a saúde geral. Em primeiro lugar, pretendo levar os conhecimentos que estou a adquirir aqui e fazer a promoção da saúde oral nas escolas. Depois, quero desenvolver o meu projeto de ter uma clinica dentária móvel.
É um projeto ambicioso.
Sim, mas quanto mais nós sonhamos alto, mais conseguimos alcançar. Sempre aprendi isso com os meus pais: sonha alto e vai atrás dos sonhos. Por isso, estou a sonhar alto. Não digo que é algo que consiga fazer amanhã, porque não estaria a ser realista, mas que vejo-me a fazê-lo daqui a cinco anos. Por isso, estou a criar uma rede de contactos, a aprender como é que os projetos são criados aqui, perceber como funcionam, a implementação, as parcerias e levar isso comigo para aplicar nos meus projetos.
Como está a correr o estágio na Associação Mutualista?
Muito bem. Está a ser intenso, muita informação, mas está a correr muito bem. Estou a aprender muito, estou a conhecer muitas pessoas, a tomar contacto com realidades que eu não sabia que existiam. Está a superar as minhas expetativas. Conheci várias instituições que gostei muito, que lidam com pessoas deficientes e percebi que era algo que eu não via muito bem. Porque não sabia que as pessoas deficientes podiam fazer coisas, porque eu olhava para elas com olhos de pena, como pessoas incapazes de fazer algo. Aqui eu percebi que não. Que o mundo é feito de cores diferentes e só tem sentido porque tem cores diferentes. E cada um tem a sua missão, que pode ser realizada com esforço pessoal.
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