“Gosto de agarrar no decadente e transformá-lo em apetecível”

“Gosto de agarrar no decadente e transformá-lo em apetecível”
20 minutos de leitura
Fotografias de Bruno Barata
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ordalo II é um reabilitador urbano. Pega em materiais em fim de vida – plásticos, partes de automóveis, materiais das obras ou outros objetos que alguém descartou – e transforma-os em arte urbana. Neto do pintor Real Bordalo, de quem herdou os dois nomes, Artur e Bordalo, o artista rapidamente divergiu da herança genética e colocou o talento inato ao serviço dos novos tempos: a crítica social, a inovação na forma e, finalmente, o estrelato entre os seus pares. Em entrevista exclusiva à Revista Montepio digital, Bordalo II fala dos primeiros tempos, do seu crescimento enquanto artista e de como a sua visão da arte como integradora da sociedade não tem época nem geografia.

Ainda se lembra do seu primeiro trabalho?

Do primeiro não, mas lembro-me da primeira série, do primeiro grupo de trabalhos. O primeiro animal de lixo foi, provavelmente, o caranguejo. Em São Miguel, nos Açores.

Tinha quantos anos?

Foi em 2012 ou 2013. Teria 26 anos.

O Artur veio do grafiti, da pintura, das belas-artes. Porém, o que faz agora é completamente diferente. De que modo desenvolveu o seu processo de criação?

É difícil dizer onde aprendi exatamente a forma de criar, mas foi uma mistura de tudo. A faculdade deu-me as bases que não tinha. Fazer grafitis na rua, à maluca, deu-me as partes de improviso, desenrascar e arranjar soluções rápidas e que funcionem. O meu avô era pintor e aprendi muita coisa com ele mesmo antes de me lembrar de existir, algumas bases mais simples.

Com quantos anos começou a ir ao ateliê do seu avô?

Desde que me lembro de existir, desde sempre. Ia desarrumar-lhe as tintas e meter pincéis nos bolsos.

Alguma vez pensou em ser outra coisa além de artista?

Pensei em ser muita coisa. As crianças têm sempre muita imaginação, e eu achava que seria astronauta ou cientista. Sempre tive bastante curiosidade pelas coisas da natureza, do mundo, da bicharada e dos animais. Quando era muito jovem comecei por desenhar dinossauros e os seus esqueletos. Lembro-me que havia uns fascículos sobre dinossauros e eu adorava aquilo, achava fantástico. Depois crescemos, caímos na realidade e ser astronauta não é uma hipótese.

Qual o melhor conselho que o seu avô lhe deu?

Trabalhar muito.

E do ponto de vista de técnica de pintura?

Dizia-me sempre para experimentar, para fazer coisas. Às vezes, quando surge uma dúvida, tomar uma decisão pode boicotar uma série de outras ideias que podem ser interessantes. Ele fazia uma coisa gira: quando me ensinava a pintar, punha um papel por cima do que estava a ser desenhado e dizia-me: “Desenha aqui em cima o que tu achas.” Depois, colocava outro papel e dizia: “Então, agora desenha a outra forma.” Isso abria-me uma série de legos que não estão só na nossa cabeça, que podem funcionar graficamente.

É uma espécie de antibloqueio criativo.

Isso mesmo.

O seu avô assistiu ao crescimento de Bordalo II enquanto artista e à notoriedade que ganhou em Portugal. Foi um orgulho para si?

Sim, e espero que também tenha sido para ele.

Ele falava-lhe disso, do que é ser reconhecido na rua, estar nos jornais, dar entrevistas?

Nunca falávamos nessa parte, mas ficava contente porque havia algum reconhecimento.

Acha que o talento é hereditário? Consegue identificar pontes nos vossos trabalhos, ainda que tenham nascido em alturas distintas da sociedade?

Há pontes, certamente. Todas as pessoas têm mais habilidade para fazerem umas coisas do que outras, se calhar eu tive a sorte de saber rabiscar e conseguir passar o que tinha na cabeça para o papel, mas é insuficiente. O resto surge com trabalho, treino, exploração. Só assim conseguimos levar o nosso talento avante e ser, ou não, artistas. Seja lá o que isso for.

“A parte social também é importante, até porque sem ela, sem a preocupação pelas pessoas, não há parte ambiental. Do mesmo modo que não existe parte social sem preocupação pela natureza”

Bordalo II

“Gosto de agarrar no decadente e transformá-lo em apetecível”

Faz parte de uma geração de artistas plásticos portugueses que são quase pop stars, cujos trabalhos são imediatamente reconhecidos pelo público. Há pessoas que vão especificamente a uma cidade, a uma rua, para verem uma peça sua. Para si, como começou tudo?

Costumo dizer que trabalhamos para um objetivo que, na nossa cabeça, é inalcançável: ter o reconhecimento e não precisarmos de nos preocupar com outras coisas para pagar as contas. Por outras palavras, conseguir ser artista. Mas quando acontece, o processo é tão orgânico e misturado com obrigações, com o muito trabalho que está alocado, que não tenho tempo para pensar nisso. Não vale a pena deslumbrarmo-nos quando as coisas funcionam, mas também não devemos desmotivar-nos se correm mal. Há sempre fases menos boas, mas temos de tirar o maior partido de tudo isso para conseguirmos fazer um trabalho de qualidade. No meu caso, o que me deixa contente é conseguir comunicar com as pessoas e fazê-las entender e explicar coisas que, para mim, são relevantes nos temas da sustentabilidade, da preocupação ambiental e social.

Quantas pessoas fazem parte da sua equipa?

Somos sete a oito artistas fixos e temos freelances a ajudar-nos em projetos. Há sempre trabalhos de última hora e é uma forma de mantermos a diversidade de talentos.

Nos seus trabalhos há um certo fascínio por animais, um contraste entre o belo e o sujo.

É engraçado conseguir arranjar um equilíbrio entre um e outro, gosto de agarrar no decadente e transformá-lo em apetecível. É sexy and dirty, não sei dizer de outra forma [risos].

Algumas das suas peças são bastante grandes. Há algum significado por detrás da dimensão dos trabalhos?

Na rua, as coisas têm de ser grandes. Nós próprios somos tão pequenos que, caso contrário, ninguém nos vê nem ouve. Muitos destes materiais são grandes, por exemplo partes de carros que, com a sua própria grandeza, são mais fáceis de identificar. A própria experiência em grafiti, que tem de ter escala para as pessoas verem, deu-me mais confiança e conforto para trabalhar em grande escala no espaço público. Quando tinha de fazer coisas rapidamente, sem que ninguém me corresse de lá para fora, acabava por desenvolver algumas formas de trabalhar dessa maneira.

Onde vai buscar os materiais para as peças?

Inicialmente, encontrávamos muitos deles em aterros ilegais. Mas também na rua. Se encontrar uma coisa interessante na rua levo-a para o estúdio. Temos alguns contactos com centros de reciclagem e empresas que têm desperdícios de coisas em final de vida, que para mim são indispensáveis para conseguir criar o que gosto.

Muitos portugueses aproveitaram o primeiro confinamento para arrumar a casa e deitar fora muitos materiais que foram guardando ao longo dos anos. Notou essa tendência de mais lixo entre março e maio de 2020 e encontrou algum objeto diferente?

Lembro-me de ter visto, na rua, algumas coisas que achava interessantes e que, num período normal, teria trazido para o estúdio. Mas como estávamos num período de pânico com tudo, não podíamos mexer em nada porque poderíamos apanhar o “bicho”. Lembro-me de ver coisas giras que quis trazer, mas pensei: “Nem pensar.”

As suas peças alertam para a questão do desperdício, para o tema da sustentabilidade, e o próprio Bordalo II faz questão de o realçar nas entrevistas. Debaixo deste manto do ambiente existe algum outro tipo de crítica?

A parte social também é importante, até porque sem ela, sem a preocupação pelas pessoas, não há parte ambiental. Do mesmo modo que não existe parte social sem preocupação pela natureza, porque este é o mundo onde vivemos e não faz sentido só nos preocuparmos com as pessoas e elas depois viverem num sítio imundo, poluído, onde vamos todos morrer devido à poluição e à contaminação que existe à nossa volta.

Ateliê de Bordalo II, Lisboa

Acredita que as pessoas pensam duas vezes naquilo que consomem quando passa esta mensagem?

Bem, eu espero que sim, mas não sou Deus [risos]. É difícil garantir que toda a gente que vê o meu trabalho interpreta, ou pelo menos reflete, as coisas que eu gostaria. Nem toda a gente vai fazê-lo, mas, se uma pequena parte, sobretudo os mais novos, o fizerem, fico bastante contente.

 

“Muitas das minhas peças ainda estão para durar”

Como funciona a parte comercial e como surgem os convites para novos projetos?

Grande parte dos trabalhos, sobretudo de grande escala, acaba por ser feita a convite de museus, festivais, coleções privadas, câmaras ou entidade públicas.

Qual o valor mais alto que lhe pagaram por uma peça?

[Risos] Acho que a arte não se mede ao metro, os valores não são o mais importante.

Tem algum trabalho favorito, das centenas que tem na rua?

A minha série favorita é Provocative.

Quanto tempo demora a construir os trabalhos maiores, dos grandes animais?

Uma peça muito grande pode demorar duas, três semanas, a ser preparada, com várias pessoas a trabalhar nela.

E o que acontece às peças que estão expostas em edifícios? São recolhidas ou acabam por ficar decadentes quando confrontadas com condições climatéricas adversas?

Muitas das peças mais antigas ainda lá estão, pelo menos as que são do tempo em que já tínhamos algum tipo de preocupação e investimento na parte da fixação. Mas nada dura para sempre e há peças que podem precisar de manutenção, umas mais do que outras. Infelizmente, por um lado, muito do material utilizado não desaparece facilmente, como os plásticos. Por isso, muitas das peças ainda estão para durar.

A pedido da Associação Montepio, produziu dois pelicanos de grande dimensão na Rua do Carmo. Já tinha trabalhado este animal?

Sim, já tinha feito um pelicano em Aruba, num barco que estava naufragado na costa.

Que materiais utilizou? Os pelicanos parecem sujos de petróleo.

Plásticos de alta densidade, caixotes do lixo ou ecopontos em final de vida, que já estavam rotos, outros que tinham sido queimados e regressaram ao centro de reciclagem, para-choques e outras partes de carros, pinos ou cones. Mas também material de obras, mangueiras, capacetes. Muitas coisas diferentes.

Há uma foto sua a trabalhar neste projeto, à noite, com o Elevador de Santa Justa iluminado ao lado. É uma foto incrível e tem um contraste interessante. O elevador, construído em 1901, época em que não havia o desperdício atual. Foi uma simbologia feliz colocar os pelicanos ali, quase uma antítese temporal da arte?

Acho que sim. É uma pena ver a arquitetura antiga a desaparecer para dar lugar a coisas novas quando ainda pode funcionar em harmonia com as outras. É interessante fazermos a ocupação do espaço respeitando o que já lá está e dando algo novo que acaba por ser mais contemporâneo da nossa vida, e das coisas às quais já estamos habituados, mas que funciona na mesma em harmonia com o passado.

“Penso explorar coisas diferentes”

 O que mudou na sua vida desde que começou a pandemia?

Mudou tanta coisa que nem lhe consigo dizer tudo. Infelizmente, por um lado, mas felizmente para a nossa sanidade mental, o bicho-homem tem uma grande capacidade de adaptação, mesmo que seja às coisas más. É bom porque não damos em loucos por perdermos o que tínhamos antes; mas é mau porque acabamos por nos esquecer do porquê de termos chegado a uma situação má e repetimos os erros.

Todos os trabalhos que se encontram no seu site estão esgotados, o que quer dizer que é um artista bem-sucedido. Vai continuar neste caminho ou vê-se a divergir, em algum ponto da sua vida, para outra arte?

Este abrandamento permitiu-me fazer coisas novas e diferentes que sempre quis fazer, estavam escritas nos cadernos das ideias mas acabaram por ser adiadas porque a agenda e o calendário acabam por ser ferozes e sobra pouco tempo. Mas tenho muitas outras coisas diferentes que vou fazendo e penso explorar. É importante explorarmos técnicas diferentes e não ficarmos agarrados a algo que as pessoas gostam e produzi-lo para sempre, como se fosse uma fábrica. Não é esse o objetivo.

Quais?

Não lhe posso dizer, são outras experiências com conceitos próximos daquilo que defendo mas com outro tipo de materiais, de linguagem.

Alguma vez se aproximou dos trabalhos que o seu avô fazia?

Não, é tudo um pouco diferente.

Nunca pensou nisso, mesmo em forma de homenagem?

No início fazia coisas próximas das dele. Abordava os mesmos temas, os mesmos ângulos das paisagens, e depois colocava as minhas personagens.

Era engraçado vermos uma aguarela de Real Bordalo com um trabalho de Bordalo II ao fundo.

Sim. O mais próximo que existe disso é a série World Gone Crazy, em que há uma paisagem tradicional de Lisboa. Mas em vez de ser o elétrico e os peões a deambularem, para ocuparem o espaço, existem animais na pele das pessoas: os carteiristas a roubarem os turistas, os polícias a correrem atrás dos bandidos. É uma série de metáforas e de críticas em que os animais estão na pele dos humanos.

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