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“O tempo livre tornou-se um superluxo”

“O tempo livre tornou-se um superluxo”
17 minutos de leitura
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Há no pensamento de Gilles Lipovetsky um tom de esperança no futuro. Aos 79 anos, e com uma vida dedicada ao “luxo” do pensamento livre e da escrita, o filósofo francês não queria viver noutra época. Isto porque, apesar de todos os desafios atuais, o ser humano nunca viveu tão bem como atualmente.

O filósofo francês, que esteve presente numa conferência apoiada pelo Montepio Associação Mutualista, explicou à revista Montepio quais as quatro figuras concretas do extremismo contemporâneo: o neoliberalismo e o hiperconsumo, o complôtismo, o populismo e o jihadismo.

Em Portugal, falou das figuras do extremismo contemporâneo. Que fatores sociais e económicos contribuem para a emergência e a popularidade dessas figuras?

O extremismo não é, obviamente, especificidade da nossa época. Sobretudo a partir do século XX, houve figuras de extremismo, nomeadamente com o totalitarismo e até Hiroshima. Nos campos de morte, os gulags, e nas duas guerras mundiais, houve formas de extremismo. Mas, na época a que chamo de hipermoderna, assistimos a novas formas de extremismo um pouco por todos os domínios. Há uma espécie de generalização do extremismo. Foquei-me em quatro.

Quais são?

A primeira é o extremismo do mercado, ou neoliberalismo, [desenvolvido] pelas pessoas que pensam que o mercado pode regular tudo. Esta ideologia liberal tem conquistado o mundo desde a década de 1980, com as reformas que foram feitas por Margaret Thatcher e [Ronald] Reagan. Passámos de um capitalismo que é controlado pelo Estado para um capitalismo desregulado, que privatiza cada vez mais serviços. Entramos numa época a que [Joseph] Stiglitz chamou “fundamentalismo do mercado”. É uma figura do extremismo que tem impactos enormes. É a bolha financeira, a crise económica de 2008, acompanhada de desigualdades maiores entre os 0,1% que são milionários e os que são pobres. As desigualdades sempre existiram, mas agora têm uma escala estratosférica. E há outros extremismos, com o complôtismo.

O complôtismo?

Da teoria dos complôs, o conspiracionismo. São as opiniões cada vez mais improváveis, que se propagam graças às redes sociais, na Internet. Temos atualmente uma percentagem não negligenciável de pessoas que pensam que a Terra é plana, que a destruição das Torres Gémeas, em 2001, foi um complô do Estado norte-americano, que a crise da Covid-19 foi criada por um laboratório. Entramos numa época estranha. A partir do século XVIII pensámos que, com o progresso da ciência, da formação e da escola, se regularia o fanatismo, as crenças mais loucas. E vemos que isso não desapareceu.

Porquê?

A Internet e as redes sociais são a primeira explicação. Mas existem outras. Na época hipermoderna, existe uma profunda desconfiança dos cidadãos sobre tudo o que é oficial (o Estado, os partidos, os líderes, os media, o parlamento e mesmo a ciência). Portanto, há um entendimento de que tudo o que é enunciado pela ciência é uma mistificação para ganhar dinheiro, para dominar o planeta.

E qual o terceiro extremismo?

É o crescimento do extremismo político – que não é o extremismo dos nazis ou dos fascistas de outros tempos, mas que difunde, por todo o lado, uma ideologia xenófoba, frequentemente antimuçulmana, que cria, no interior dos países, novas formas de conflito, de rivalidade, de violência. É extremamente perigoso porque é um extremismo de linguagem mas que cria histeria no debate democrático, que coloca violência em tudo.

Há uma relação entre este extremismo e o segundo que referiu, ligado aos complôs.

Sim, os populistas veiculam as teorias do complô. Por exemplo, com as teorias da grande substituição, que dizem que existe um complô para que os muçulmanos invadam a Europa. A ameaça do populismo é um veneno tóxico para a democracia porque polariza as opiniões, a vida política, tudo se traduz numa vida em sociedade na qual toda a gente é inimiga. Logo, é um perigo para uma sociedade de paz, de tranquilidade pública. Por todo o lado vemos formas de violência política a reaparecer porque as opiniões são incendiadas por discursos de extrema violência.

Acredita que é possível, e ainda há tempo, para combater este extremismo ou este veneno?

Sim. A extrema-direita é um perigo, cresce, expande-se, mas não está escrito que será a vitória final. O extremismo não conseguiu destruir a ordem democrática, as eleições, os magistrados e o Estado de direito. É uma ameaça que assume formas diversas, mas não creio que a Europa esteja numa situação como a de entre as duas guerras, na década de 1930, quando se assistiu ao crescimento do fascismo, do nazismo. Penso que, paradoxalmente, a democracia está cada vez mais sólida. É resiliente.

“A extrema-direita é um perigo, cresce, expande-se, mas não está escrito que será a vitória final. O extremismo não conseguiu destruir a ordem democrática, as eleições, os magistrados e o Estado de direito.”

Gilles Lipovetsky

Falta ainda abordar um quarto extremismo. Qual é?

É o islamismo, o político e o jihadismo que, no mundo, é acompanhado pela submissão das mulheres, particularmente no Irão (onde os direitos não são os mesmos para as mulheres e os homens e se exerce uma verdadeira ditadura em nome do islão, da sharia) ou no Afeganistão. É um extremismo terrível – as jovens não podem sair, não podem ir à escola.

Esse extremismo está longe de nós mas, na realidade, nós sentimo-lo com o jihadismo e o terrorismo, que ferem a Europa. É um desafio terrível porque muitos terroristas nasceram na Europa: frequentaram a escola, ouvem rock, bebem Coca-Cola. E isso não os impede de colocarem bombas e destruírem centenas de pessoas.

A sociedade hiperindividualista é uma sociedade de insegurança, de desorientação. As pessoas não sabem quem são, não têm razão para viver. Estão perdidas, desorientadas e, ao envolverem-se em causas extremas, adquirem um sentido de vida. O grande paradoxo é que, por um lado, esta forma de fanatismo colide frontalmente com os ideais individualistas mas, ao mesmo tempo, é a dinâmica do individualismo que apoia o surgimento destas novas formas de extremismo.

Para os combater é importante que a sociedade seja cada vez mais coletivista?

O combate contra isto é extremamente difícil porque não existe uma resposta simples. São indivíduos que não pertencem a grupos. Radicalizam-se com a Internet. Acredito que são necessárias práticas de moderação dos conteúdos nas redes sociais. Sou a favor dos computadores, mas acredito na ação dos seres humanos, na relevância da relação entre eles. Não creio que as máquinas, os robôs, possam ser a solução de todas as coisas. Em particular, destas formas de extremismo, que podem contribuir para o seu desenvolvimento. É necessário um contrapoder, e contra a extrema-direita temos de continuar a dizer a verdade. E é aí que os livros, a escola e a reflexão desempenham, apesar de tudo, um papel que abre caminho à esperança. É preciso que as escolas e as empresas deem a vantagem do poder às pessoas para que elas possam agir em relação às suas próprias vidas.

Acredita que é possível reconciliar a cultura do consumo excessivo com a necessidade urgente de práticas duráveis? Quais são os grandes desafios e oportunidades?

O grande desafio é, inegavelmente, o desafio climático. E está ligado ao consumo, ao sistema de produção que emite CO2 de uma maneira excessiva e que desregula o clima. Existem contradições entre o hiperconsumo e a capacidade da Terra se regenerar. É necessário mudar o modo de consumo, temos de regressar a um consumo sóbrio – não andar mais de avião, não conduzir mais o carro, não mudar de smartphone, não comprar vestuário da fast fashion, não comer carne, etc. Compreendo o argumento, mas creio que não é uma boa lista porque os consumidores não são sábios que vão alinhar-se sobre bons princípios. A prática das pessoas é diferente. Atualmente, os cidadãos consideram que o consumo é um direito. E, apesar de o discurso sobre sobriedade e moderação ser bom, não é possível praticá-lo.

Qual é a solução?

Acelerar a produção de energia própria, renovável, e transformar os modos de produção de habitação e de transporte. Vejo mais vantagens na alteração dos aparelhos produtivos do que nos consumidores. Temos de reinventar a economia, que tem de ser circular, de reciclagem e, sobretudo, com eletricidade de fontes renováveis e não energia fóssil. Isto não desqualifica o discurso de moderação e sobriedade. Mas não sejamos idealistas. O ser humano não é um anjo.

Com a ascensão das redes sociais, como vê o equilíbrio entre a busca pela autenticidade e a pressão por uma imagem idealizada e selecionada?

O que vemos nas redes sociais é a expressão da cultura da autenticidade subjetiva. Ou seja, a cultura da expressão do eu, de falar de si.

É o individualismo?

Sim, de facto. O problema é que, em nome da autenticidade, cria-se uma autenticidade um pouco falsa. Quando se fala do “eu” nas redes sociais é, em geral, para dar uma boa imagem. É pouco autêntico. É o marketing do eu, é um ego-marketing, que quer receber likes, a aprovação dos outros. Estamos dependentes da sua aprovação. As pessoas ficam mais ansiosas por não receberem recebem likes do que com a mensagem. É insignificante. Quando vemos o discurso, as fotos que as pessoas tiram de tudo, constantemente, qual é o sentido disso? Fotografam o cão a comer, o que vão comer no restaurante, tudo o que fazem tem fotos, contam que estiveram de férias na hora tal na rua tal. Isso interessa a quem? É uma cultura de autenticidade pessoal, mas que tem uma face um pouco insignificante.

“Sou a favor dos computadores, mas acredito na ação dos seres humanos, na relevância da relação entre eles. Não creio que as máquinas, os robôs, possam ser a solução de todas as coisas.”

Gilles Lipovetsky

Este consumo é uma ilusão feita pelo marketing e a publicidade? Tenho esta marca de roupa, vou àquela praia da moda. Não é por mim, é pelos outros e numa tentativa de identificar-me com os outros? Ou nessa sociedade de consumo podemos ter uma vida plena e significativa?

O que diz é, em parte, a verdade. Não é verdade que tudo o que compramos e fazemos é para sermos como os outros. É verdade em alguns casos, mas creio que, cada vez mais, o consumismo das pessoas é mais individualizado. Procuram coisas de que gostam. Não compram um vestido para ficarem iguais às amigas, mas porque gostam da cor, porque lhe fica bem. Não é um comportamento mimético. O que diz corresponde ao consumo dos jovens. Ao envelhecer, tem hábitos que lhe agradam. Hoje, a moda não se impõe, há 50 estilos, marcas muito diferentes. Sim, há marcas que fazem publicidade. O que a faz escolher entre uma marca ou outra? Porque, em determinado momento, o estilo convém mais do que outro. Acredito que existe uma verdadeira individualização.

Em segundo lugar, é um erro pensar-se que o consumo e o hiperconsumo são o caminho para a felicidade. O consumo dá-nos satisfações pontuais. Gosta de viajar, de apanhar um avião e ir aos Fiordes. Quando regressa a Lisboa está muito contente, mas isso não é exatamente felicidade. Porque foi-se embora mas persistem os problemas com os filhos, com o marido, no emprego, etc. Não lhe trará felicidade. Portanto, pensar que comprar dá uma verdadeira satisfação na vida é uma profunda ilusão.

Não consumir provoca ansiedade porque o consumo, o dinheiro, tudo isso ganhou tanto peso que, se tiver de se privar de tudo, entendo que possa necessariamente atrapalhar a busca pela felicidade. Mas acreditar que, porque compra, muda de marca e consome terá uma vida plena, isso é uma completa ilusão. Há coisas mais importantes do que o consumo. A satisfação no trabalho que faz, por exemplo, é muito importante, porque dá autoestima, um certo orgulho. Comprar um vestido ou mudar de carro não creio que faça esquecer a dor de uma separação ou de uma deceção amorosa. O consumo não pode regular tudo.

O modelo mutualista remete para questões da cultura tradicional de consumo. Considera que esta cultura oferece uma alternativa ao hiperconsumo?

Há vários aspetos nessa questão. A cultura mutualista e o consumo tradicional são bastante diferentes. Sou muito favorável ao mutualismo, mas não é consumo, é um sistema de organismos que me parecem moderados. Não buscam o lucro, não procuram a criação de valor para um acionista. E, portanto, há um princípio de moderação. São instituições dinâmicas que são pelo progresso, mas é um progresso no qual o objetivo não é simplesmente enriquecer os acionistas, mas o bem geral. Creio que é um contrapoder ao fanatismo do mercado.

Existe um consumo ético, uma responsabilidade partilhada.

Sim. Mas isso é outro assunto que não propriamente o mutualismo. Outra questão são as novas formas de envolvimento dos cidadãos através do consumo responsável, que favorece os camponeses, os pequenos comerciantes. Hoje, para alguns consumidores, o ato de consumo é um ato político e não, simplesmente, uma procura pelo prazer e a satisfação. Ou seja, as escolhas e compras que se fazem são para combater um tipo de sociedade, um tipo de civilização. Isso dá sentido ao consumo.

Há o problema do orçamento. Se se compram maçãs biológicas, vestuário feito em condições responsáveis e não pela fast fashion chinesa, os produtos são mais caros. As pessoas não são anjos. E querem continuar a consumir. Se os produtos responsáveis forem muito caros, os consumidores vão rejeitar. Não se pode acreditar que, por causa dos discursos sobre as alterações climáticas, a responsabilidade planetária, os consumidores vão tornar-se atores morais. Não acredito nisso. Porque o orçamento familiar não é enorme. E na sociedade de hiperconsumo as pessoas vão continuar a ir de férias, a sair aos fins de semana, a ir a concertos, a assinar a Netflix, a trocar de t-shirt, etc. Podemos ter uma grande retórica, mas o resultado não será um declínio do consumo.

É um paradoxo. Em Portugal dizemos: faz como eu digo, não faças como eu faço.

É isso mesmo. Regresso ao que dizia no início: acredito na vantagem da ação do Estado para dar prioridade às mudanças no modo produtivo para energias renováveis. Acredito mais nisso do que numa cruzada moral.

Gilles Lipovetsky na primeira pessoa

Qual é a pergunta mais frequente que os jornalistas lhe colocam? É sobre o hiperconsumo?

Sim, é uma questão que surge muito. O crescimento dos Estados Unidos, e em breve da Europa, é impulsionado pelo consumo das famílias. Em 1950, consumir era comprar um carro e talvez ter, sei lá, um frigorífico. Hoje, o consumo está em toda a parte. Consumimos até nas redes sociais, em todos os lugares. Por isso, tornou-se invasivo. Ou seja, o hiperconsumo já mudou a vida. E as próprias redes sociais são uma forma de hiperconsumo.

Onde encontra as suas ideias? Qual é o seu processo de escrita? Quando percebe que está pronto para escrever um livro?

Tenho sorte. Quando se termina um livro é como uma mulher que acabou de dar à luz, um momento que, às vezes, é um pouco delicado porque muda novamente a vida. Eu não gosto de terminar um livro. Não gosto porque é uma história de amor que termina. E quando acaba fico um pouco perdido. É um momento difícil. Mas tenho sorte porque, em geral, não fico muito tempo sem encontrar um novo assunto de amor. Um novo objeto de amor. E o amor começa de novo. O importante é estar apaixonado. E sem amor não é possível viver. Sou um pouco como Don Juan.

O que o inspira?

Tudo me inspira. Tudo. E ler jornais, obviamente. Escrevo, mas ao mesmo tempo faço pesquisa. Leio muitos livros. Descubro novos dados. É, portanto, uma boa ligação entre o trabalho teórico, dos grandes conceitos, e os dados empíricos. Não sou um filósofo dedutivo. Sou uma mente abstrato-concreta, ou seja, preciso que as proposições teóricas que afirmo possam ser confirmadas pelos factos. Com a Internet temos quantidades consideráveis de dados. Sou constantemente alimentado por isso. E trabalho de uma forma muito organizada porque tenho um fio condutor, sei para onde vou e o que quero dizer. Mas depois é caótico porque tudo depende do que vou encontrar. Estou à procura. E, às vezes, o que encontro obriga-me a mudar ou bifurcar um pouco, porque encontro elementos que me obrigam a corrigir a teoria.

Tem a sorte de ter tempo para pensar. Muitas pessoas não têm tempo para refletir. 

Esse é um verdadeiro problema. Vivemos na sociedade da hipervelocidade que, em vez de libertar tempo, faz com que fiquemos sem tempo. E as mulheres, em particular, têm várias vidas: a do trabalho, a vida amorosa, a vida dos filhos e da casa. Quando estão no escritório, pensam um pouco nos filhos. Quando estão com as crianças, pensam no trabalho. E têm pouco tempo para elas. Quando tinha a sua idade, aos 30 anos, o ritmo de vida não era o mesmo. Agora, as pessoas que têm responsabilidades não param de trabalhar. Tenho sorte de ter nascido numa época e de ter uma cultura que me permite um grande luxo, que é fazer o que quero. Ninguém me obriga a escrever livros, faço-o livremente. Não quero ordens, faço no meu ritmo. O tempo livre, tem toda razão, tornou-se um superluxo. É preciso tempo para aprender, para dar atenção às crianças, para desfrutar de uma boa refeição, para visitar uma cidade bonita, para amar. É preciso tempo para praticar e é preciso tempo para pensar. Escrevi livros que podem ser muito contestados. Mas, francamente, fiz o melhor que pude. E fi-lo porque não tinha restrições.

Gostaria de ter vivido noutra época?

A modernidade, na primeira metade do século XX, foi horrível. Duas guerras mundiais, os campos de extermínio, os gulags. Como se pode sentir nostalgia de uma época anterior? Gostaria de ter vivido as eras avants-garde, mas os tempos eram horríveis. O hiperconsumo coloca problemas, mas, em última análise, ainda o prefiro à miséria da década de 1930, depois da grande crise económica. Vivemos cada vez mais e os bebés nascem saudáveis. Temos agora uma esperança de vida superior a 80 anos e estamos em boas condições físicas. É claro que há problemas, mas não devemos ver apenas os aspetos negativos.

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