O meu último dia de trabalho

O meu último dia de trabalho
14 minutos de leitura
Fotos Rodrigo Cabrita e Maria João Gala
14 minutos de leitura
H

á quem esteja à espera dele desde sempre, outros tentam evitá-lo. E há, sobretudo, muitas dúvidas sobre o dia seguinte ao último dia de trabalho. Um piloto de aviões, um futebolista, uma professora e uma funcionária pública explicam como se prepararam para os anos dourados e se têm rendimentos para vivê-los despreocupados.

Quando começou a ver o final da carreira ao fundo do túnel, o futebolista internacional português Ukra reduziu o estilo de vida. “Fui diminuindo as minhas despesas para um nível em que, deixando de jogar e tendo outro emprego, pudesse pagá-las”, explicou à Revista Montepio. Com três lesões graves na carreira, imprevistos que foram socos no estômago da estabilidade financeira, o futebolista manteve sempre os pés assentes na terra. Fez um pé-de-meia e evitou extravagâncias. Hoje, mantém o nível de vida com a tranquilidade que os seus 36 anos, um jovem na flor da idade, lhe permitem.

Tal como Ukra, também o comandante José Correia Guedes, a professora Sebastiana Costa e a funcionária pública Olga Alves planearam o seu pós-carreira, cada um com as suas “armas”. São histórias de sucesso que partilhamos como incentivo a quem tem de tomar uma das decisões mais importantes da vida: o momento em que deve começar a preparar a reforma.

MONTEPIO POUPANÇA REFORMA

Já imaginou a sua vida quando não tiver de trabalhar?

Saber mais

José Correia Guedes, comandante da TAP

“Naquele dia, começou a década mais feliz da minha vida”

Em setembro de 2006, o nome de José Correia Guedes, comandante de longo curso da TAP, não fazia parte da escala do mês seguinte. “Faço anos a 25 de outubro, por isso nesse mês já não voei”, explica ao telefone a partir do Estoril, onde reside. A aposentação foi compulsiva. Em 2006, a Organização da Aviação Civil Internacional (ICOA) estipulava os 60 anos como data-limite para pilotar um avião. Se tivesse nascido um ano depois, José Correia Guedes poderia ter prolongado a carreira por cinco anos, devido à mudança das regras que ainda hoje vigora. Ainda assim, seria improvável. “Estava muito cansado. Estive 37 anos na TAP, são muitos anos. Estava com vontade de passar mais tempo com a família, com as minhas filhas, ter uma vida razoável em vez de andar a voar todas as semanas para qualquer lugar do mundo”, recorda.

A vida de José Guedes Correia foi – e é – pródiga em eventos. Na TAP, passou por todos os patamares. Foi comissário de bordo, mecânico de voo, copiloto e, finalmente, comandante. Nos últimos anos, era responsável pelos voos de longo curso no maior avião da companhia aérea portuguesa, o Airbus 340. “Tinha umas quatro ou cinco viagens por mês, sendo que cada viagem é uma ida e uma volta. E estava muito cansado devido a esta rotina permanente. Viajar é muito bonito, mas viajar todas as semanas ao longo de quase 40 anos é um absurdo”, explica. A isto acresce o facto de a maioria das viagens de longo curso serem de noite e, por isso, José Correia Guedes tinha poucos dias para recuperar do jet lag. Quando conseguia, estava na hora de regressar. “Este ritmo causa confusão no nosso organismo e no sistema nervoso. Daí o cansaço.”

No último voo da carreira, de ida e volta para o Rio de Janeiro, levou a família. “Não foi um momento triste e depressivo, bem pelo contrário. Houve uma grande festa de despedida e tive a sorte de ter uma supervisora de cabine que acordou os passageiros pouco antes de chegarmos a Lisboa e pô-los a cantar os parabéns a você”, recorda. Já em terra de vez, abraçou o maior dos projetos: passar mais tempo com a família. “Reconheço que fui um pai ausente – bastante ausente – para as minhas duas filhas”, lamenta.

Aos 60 anos, a década de ouro

Para José Correia Guedes, os 60 foram os novos 30. “Estava longe de pensar que, naquele dia, ia começar a década mais feliz da minha vida”, conta. “Estavam reunidas todas as condições para que isso acontecesse. [Tinha] liberdade, saúde e algum conforto financeiro.” A liberdade física, reconhece, esteve muito ligada ao dinheiro. “Tive a sorte de casar com uma mulher muito atenta à parte financeira. E que soube gerir muito bem o nosso património. Fizemos investimentos ao longo da vida, que correram e continuam a correr bem. E também tenho uma pensão de reforma simpática, para dizer o mínimo”, conta.

Com tempo livre e dinheiro, aproveitou a vida. Fundou o clube português do Porsche 356, o carro dos sonhos que comprou dois anos antes de se reformar, e fez rallies por toda a Europa. Com tempo, passou a planear as atividades lúdicas. Por exemplo, a ida a um concerto ou uma viagem. E tem sido um avô presente para os quatro netos: “Não fui um pai a 100%, mas sou um avô a 120%”, conta.

Hoje, Portugal conhece-o, também, pelos livros que escreveu e histórias fascinantes sobre a longa carreira. José Correia Guedes diz que o gosto pela escrita chegou na juventude. “Cheguei a ter redações publicadas em jornais regionais.” Mais tarde, frequentou um dos primeiros cursos de Jornalismo em Portugal e foi colaborador do jornal Expresso. “Gosto muito de ler e as duas coisas estão associadas”, afirma.

O primeiro livro, Na Rota do Yankee Clipper, chegou em 2012. Mais tarde, a pedido de muitos amigos, começou a escrever a sua autobiografia, publicada em 2017 com o nome O Aviador. O livro, que tem a chancela da Lua de Papel, que pertence ao grupo Leya, já vai na 9.ª edição e deu-lhe visibilidade nacional. Desde então acumula seguidores nas redes sociais e é presença regular em conferências, nas faculdades e na televisão. O terceiro livro, Carlos Bleck – O herói esquecido da aviação portuguesa, foi publicado em 2021. “A minha vida continua bastante preenchida, mas de uma forma que eu gosto e sobre a qual tenho absoluto controlo.”

No entanto, nem tudo foram rosas. “A reforma [de um piloto] é uma mudança brutal porque nos cortam as asas. Há colegas que lidaram muito mal com esta transição e nunca se adaptaram. Alguns até acabaram por morrer mais cedo por causa dessa frustração”, recorda. Aos 78 anos, José Correia Guedes continua a ser um membro ativo da sociedade portuguesa, uma espécie de arquivo humano com visão de futuro. “Gosto de revisitar o passado, mas não sou um museu. Gosto de olhar para a frente”, conclui.

Ukra, futebolista

“Fui diminuindo as despesas e organizei a vida para não mexer no pé-de-meia”

17 de maio de 2024, minuto 17 do Rio Ave vs. Benfica. 17 anos depois de começar a carreira, André Monteiro, ou Ukra, número 17 na camisola, retira-se do futebol profissional. Tinha 36 anos e uma vida inteira pela frente. “Fui operado três vezes aos joelhos e os últimos anos foram de sofrimento. O meu corpo pedia descanso”, conta à Revista Montepio. Essa sexta-feira à noite marcou a despedida de Ukra: beijou os dois joelhos e teve direito a uma guarda de honra de todos os jogadores, entre eles o adversário Nicolás Otamendi, capitão do Benfica e ex-colega de equipa nos primeiros anos de sénior, ainda no FC Porto. “Quando a época começou não tinha ideia de acabar a carreira, queria fazer mais um ano de profissional. Mas em setembro comecei a ver o futebol amador, por motivos familiares. Devo ter visto uns 30 jogos do ACD Fornelo, onde hoje jogo”, conta a brincar. A vida é feita de coincidências. Ao ver a envolvência por detrás de um jogo de futebol amador, sem as câmaras de televisão nem o glamour dos grandes craques, disse à esposa, Neuza: “Para o ano vou estar aqui.” De certa forma, o futebol amador ajudou-o na transição da carreira. “Meti aquilo na cabeça e fui preparando o final da carreira. Foram 29 anos a treinar e jogar todos os dias. Fez-me sair em paz.”

Nesse dia, dois mundos juntaram-se. O da primeira profissão, que Ukra já sabia que acabaria cedo, e o dos planos para o futuro. “Não estava nervoso, mas feliz”, recorda. No almoço de equipa, antes do jogo, reservaram-lhe um cadeirão a dizer “Rei Ukra” no canto da mesa. Depois do jogo e do jantar de final de época, o futebolista diz que chegou a casa às 04h00 e ficou duas horas, no carro, a ver as notícias e a ler as mensagens. “Quando levantei a cabeça já era dia. Até o José Mourinho me enviou uma mensagem”, brinca.

A pós-vida financeira de um futebolista

A nova vida de Ukra começou a definir-se em 2021, quando lhe perguntaram se queria trabalhar em televisão. Mais tarde, foi a Liga Portugal que o abordou para ser embaixador da marca, ajudando a promover os jogos e a dar notoriedade ao principal campeonato de futebol português. Antes, Ukra tinha ganho uma legião de seguidores e fãs devido ao carisma, autenticidade e presença nas redes sociais – tem quase 140 mil seguidores no Instagram. “As pessoas gostam dos valores que tive na carreira. A ligação ao marketing foi surgindo e é um mundo onde gosto de estar.”

No futebol, Ukra chegou longe. Internacional por Portugal, jogou em clubes como FC Porto, Braga e Rio Ave. Mas foi na Arábia Saudita, onde jogou um ano, que ganhou mais dinheiro. “Comparado com uma pessoa normal, ganhei um salário mais alto. Mas só comecei a fazer o meu pé-de-meia quando fui jogar para a Arábia Saudita, para o Al-Fateh”, explica. A experiência saudita ficou marcada por um momento de infelicidade: quando ia prolongar o contrato por mais dois anos e obter outra estabilidade financeira, lesionou-se no joelho e o clube recuou. “Fiquei sem clube, sem contrato, tive de pagar a operação e a recuperação”, refere. Apesar das contrariedades, regressou a Portugal e jogou futebol profissional durante mais seis anos.

Apesar de tudo, o futebolista diz que não se pode queixar. “Em Portugal, o meu salário mais alto foi de 8 300 euros por mês, ou seja, 100 mil euros por ano. Ganhei este valor durante três anos, não tenho problema nenhum em dizê-lo”, afirma. Apesar dos valores inflacionados para o salário médio em Portugal, as despesas eram condizentes. Com quatro filhas com 17, 14, 6 e 4 anos, Ukra sempre teve despesas avultadas durante a carreira. “Em 2012, quando me separei, tinha despesas fixas de 4 000 euros”, conta.

Gorado o jackpot da Arábia, o futebolista começou a fazer contas à vida e a começar, conscientemente, o downsizing financeiro. “Fui diminuindo as minhas despesas para um nível em que, deixando de jogar e tendo outro emprego, pudesse pagá-las.” Neste momento, continua a fazer a mesma vida que tinha como jogador de futebol. “Organizei a vida para não mexer no pé-de-meia e viver com o ordenado que vou tendo.”

Hoje, Ukra continua a jogar futebol, ainda que num campeonato amador, e sente que a vida, por vezes madrasta, acabou por ser generosa. “Se continuasse mais um ano como profissional não estaria tão feliz como agora. Consigo aproveitar o que nunca tive: ir ao cinema, jantar como e quando quero, não tenho horários para me deitar”, confessa. Diz que mantém a forma física e continua a ser o mesmo Ukra que Portugal aprendeu a conhecer como um jovem extrovertido e com milhares de histórias divertidas para contar. Podemos vê-lo todas as semanas no programa Ukra by Night, na SportTV+, no Instagram e, em breve, noutros registos. “Tenho mais coisas que estão a ser cozinhadas na SportTV e outros projetos. É ficar atento”, conclui.

Sebastiana Costa, professora de Matemática

“Quando deixei a escola tive ataques de ansiedade”

Para Sebastiana Costa, o último dia de janeiro de 2024 foi um grande trinta-e-um. Não que lhe tivesse causado uma grande embrulhada. Foi, aliás, o oposto. “Foi o meu último dia de trabalho”, confessou à Revista Montepio. Para trás ficou um legado de 41 anos como professora de Matemática, os últimos 37 na Benedita, em Alcobaça. “Licenciei-me em Gestão de Empresas, mas, se os meus colegas homens estão todos nas empresas, as mulheres estão todas no ensino”, explica meio a brincar, meio a sério.

Eram outros tempos. Depois de fazer o ensino secundário em Vila Real de Santo António, Sebastiana estudou em Lisboa e foi na capital, e em Almada, que começou a ensinar Matemática. A dificuldade em tornar-se professora efetiva levou-a para o Oeste e foi aí que fez carreira. A 24 de janeiro de 2024, recebeu o email que tanto antecipava. “Dizia que a minha aposentação tinha sido aceite. Fiquei contente, apesar de gostar do relacionamento que tinha com os alunos. Sobretudo disso. Dava-me muito bem com eles.” Como a direção da escola já sabia que se aposentaria nos meses seguintes ao início das aulas, não lhe foram atribuídas turmas. Mas assegurava a coadjuvação de matemática: ajudava os alunos com mais dificuldades na disciplina. “Quando dei a minha última aula, em junho de 2023, não sabia que o estava a fazer. Por isso, foi muito leve”, refere.

Os alunos, garante, gostavam dela porque ensinava bem. “Tenho alunos que são médicos, advogados, deixei a minha marca e é muito bom. Os professores fazem muita diferença na vida das pessoas.” Mas ensinar quatro décadas é duro. “Estava muito cansada. Só quem passa por elas é que sabe. As minhas aulas foram sempre de pé a falar para os alunos, a escrever no quadro e a praticar, que a matemática aprende-se a resolver problemas.” Quando, mais de um mês após a aposentação, foi chamada à escola para uma festa de despedida, a emoção tomou conta dela. “Fizeram-me um lanche a meio da manhã, deram-me um ramo de flores e uma prenda. E chorei, claro. Mas já sou um bocado chorona. Os meus colegas professores diziam-me: ‘Ai, quem me dera estar no seu lugar’.”

Uma reforma suficiente

Hoje, Sebastiana divide o tempo entre a Benedita e Lisboa, onde vai regularmente para tomar conta do neto. Inscreveu-se na hidroginástica e ainda pensou em dar explicações. “Mas já chegou. Os professores de Matemática e de Português acabam a carreira muito cansados”, explica. Nos primeiros dias de reforma, sentia falta da escola. “Por vezes, tive ataques de ansiedade. Fazia-me falta estar com os miúdos todas as manhãs.”

A chegada da reforma acarreta, ainda, desafios financeiros. “Não vou dizer que tenha uma vida por aí além, mas vivo desafogadamente. O meu vencimento dá para as minhas despesas”, explica. Mas confidencia que alguns colegas adiaram a reforma porque ficariam financeiramente prejudicados. “Aos 66 anos, e mesmo que não tivesse o tempo de serviço e ficasse prejudicada, acho que me aposentava na mesma.”

Adepta da poupança a longo prazo por influência dos pais, Sebastiana ficou “a ganhar menos 300 euros” do vencimento como professora. “Nunca gastei o meu ordenado todo, gostava sempre de poupar. E faz falta essa noção à juventude, acho que as pessoas gastam demasiado por mês”, conclui.

Olga Alves, funcionária pública

“Estava preparadíssima para me reformar”

Durante décadas, atravessar a Ponte 25 de Abril, desde o Monte da Caparica até ao seu posto de trabalho na Direção-Geral de Energia e Geologia, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, fazia parte da rotina diária de Olga Alves. Foram 43 anos de carreira na função pública que, em setembro de 2024, chegaram ao fim. Aos 66 anos, já ansiava pelo dia em que não teria de fazer esse percurso. “Estava muito cansada, desejosa de ir para casa”, conta. O seu último dia, no entanto, chegou mais depressa do que esperava. Após uma longa espera pela contabilização do tempo de serviço, soube numa segunda-feira que, a partir de sexta-feira, estaria oficialmente reformada. “Foi tudo de repente,” refere. “Eu sabia que o processo estava ‘a andar’, mas não imaginava que fosse tão repentino.” O último dia foi um misto de alívio, salpicado com alguma nostalgia.

Sem tempo para despedidas, pois grande parte dos colegas estavam de férias, as últimas horas no trabalho foram passadas a arrumar os objetos acumulados ao longo de quatro décadas. “Não consegui dizer adeus como queria, mas foi o suficiente para perceber que estava pronta,” explica com a tranquilidade de quem encerra um ciclo.

Afinal, a preparação começou bem antes do seu último dia de trabalho. No plano financeiro, Olga sentia-se segura. Tinha realizado simulações e ficou tranquila ao perceber que o montante seria suficiente para manter o seu padrão de vida, em particular por ter a estabilidade de possuir casa própria. “Há quem viva com muito menos!”, exclama. Em termos emocionais, a transição foi serena e gradual. “Estava preparadíssima”, afirma. Desde então, Olga aproveita os dias com mais calma. “Se sair, estou bem. Se estiver em casa, estou bem”, confessa a ex-funcionária pública. Sem grandes planos para o futuro, espera dedicar os próximos anos a descansar e na companhia do neto. A hidroginástica está nos planos, como forma de manter a saúde, mas sem grandes pressas. Por fim, deixa um conselho àqueles que se aproximam do último dia de trabalho: “Se estão mesmo convictos, sigam em frente, porque não há nada melhor”, remata.

Também pode interessar-lhe

Está prestes a terminar a leitura deste artigo, mas não perca outros conteúdos da sua Revista Montepio.