Porque tratamos os animais de estimação como filhos?

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relação entre humanos e animais de estimação mudou. Cães e gatos são membros da família, têm uma alimentação nutricionalmente rica, usam roupa e brinquedos sofisticados – alguns até têm contas no Instagram. O mercado está a responder à tendência e cresce exponencialmente.

É em tom de brincadeira que Ana Gomes confessa que agora já entende os receios da mãe: até há pouco tempo, todas as noites a contabilista e especialista em treino animal ficava à espera que Figo, o gato mais novo de quatro, regressasse a casa do seu habitual passeio noturno. Hoje a rotina é mais relaxada para todos: comprou uma gateira automática que permite que o gato saia e entre em casa livremente. Não é uma porta qualquer, trata-se de um aparelho refinado que, para evitar que animais estranhos também entrem, é capaz de ler o chip do seu animal.

Figo, Samu, Cajó e Simão são parte da família, diz, sem pensar duas vezes. Com António Domingues, dono da Chanel, uma golden retriever que vai com ele para o escritório, ou Maria Ângela Gomes, tutora de Artur, um teckel com página de Instagram, o sentimento é o mesmo.

Os laços entre os humanos e os animais de estimação têm vindo a estreitar-se, o que deu origem a um novo conceito de organização familiar: a família multiespécie. Com origem nos estudos de Ciências Sociais e Antropologia (e aqui destaca-se o trabalho da socióloga e antropóloga Donna Haraway), este termo remete para os animais como parceiros afetivos e partes essenciais da unidade familiar, com direitos e cuidados semelhantes aos dos humanos.

“O Artur, além de um cão com nome de gente, é o bebé da família”, brinca Maria Ângela Gomes. A chegada deste teckel “revolucionou” o quotidiano da família da profissional de marketing que vive com as duas filhas, de 17 e 19 anos. “É necessária toda uma logística entre os nossos horários diferentes para assegurar passeios diários, brincadeiras, refeições, idas ao veterinário, fins de semana, programas em família, férias e afins”, afirma. O bem-estar do animal, relata, é “crucial”.

Adotada em 2020, na altura da pandemia, Chanel é o elemento “mais consensual e menos conflituoso” de sua casa, brinca António Domingues, administrador da Plot Content Agency. Não que a golden retriever seja igualada aos seus filhos. “Não cedemos a estas coisas dos cães serem equiparados a filhos. Não é a mesma coisa. Faz parte da família, mas não é um filho.” É, ainda assim, um animal que recebe muitos “mimos” e que é “muito privilegiado”, sobretudo numa fase em que também está encarregue de aliviar uma possível sensação de ninho vazio. “Os meus dois filhos foram estudar para fora, portanto a cadela acaba por receber muito mais atenção.”

Adotada na pandemia, Chanel vai com o administrador da Plot, António Domingues, para o escritório. A cadela, que é das mais assíduas, recebe mimos de todos

O boom do mercado dos animais de estimação

Nas lojas de decoração, entre sofás, cadeiras e lençóis, surgem secções exclusivamente dedicadas a cães e gatos. Nas marcas de alta-costura temos trelas, coleiras ou roupa. Nas lojas de comercialização exclusiva de produtos para animais há um boom de novas opções, desde comida a brinquedos e até produtos de higiene.

“As marcas estão a diversificar as suas gamas de produtos com o objetivo de responder às necessidades e preferências cada vez mais específicas dos tutores”, diz Joana Soares, diretora de marketing da Goldpet, uma loja de produtos para animais.

Esta é uma realidade que gera um excelente retorno. De acordo com um estudo da Bloomberg, estima-se que o mercado dos animais de estimação irá crescer de 293 mil milhões de euros para quase 460 mil milhões até 2030 – o mesmo estudo indica que os Estados Unidos devem permanecer como o maior mercado, com as vendas a atingirem os 183 mil milhões até ao final da década.

Com uma oferta segmentada por raça, peso, porte, idade ou problemas de saúde específicos, a alimentação é uma das principais preocupações dos tutores, indica Joana Soares. É também uma das maiores despesas, aponta a Bloomberg, sendo a categoria de maior valor no mercado de produtos para animais: as projeções apontam para que o setor alcance 123 mil milhões de euros até ao final da década. “Na alimentação, há uma atenção redobrada em relação aos ingredientes, com muitos tutores a preferirem rações e snacks de elevado valor nutricional, elaborados com ingredientes de qualidade superior, sem adição de conservantes artificiais”, refere Joana Soares. “O tutor escolhe os produtos para os seus animais com o mesmo cuidado que dedica às suas próprias escolhas.”

Ana, Maria Ângela e António cuidam da alimentação dos seus animais. Chanel varia entre dois sabores de uma ração biológica que ajuda a prevenir problemas gastrointestinais. Artur, o teckel, além da ração come cenouras, ovos cozidos (que “adora”) e, quando há tempo, frango com caldo, o seu favorito. Já Ana Gomes opta por comida húmida e ração diária para os quatro gatos, sendo esta de gama premium para os mais novos e veterinária para os mais velhos.

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Pet-influencers: os animais com Instagram próprio

No que ao processo de humanização concerne, o caso de Artur será o mais paradigmático: o teckel tem a sua própria página de Instagram, plataforma onde reúne perto de 40 mil seguidores. “Criei a página do Artur por graça, para não sobrecarregar a minha página pessoal com imagens dele”, explica a marketeer. “Depressa me apercebi de que há uma comunidade enorme na plataforma e que os donos – que publicam os conteúdos em nome dos seus animais – além de mostrarem as proezas, o dia a dia, as expressões dos seus animais, se entreajudam.”

O animal está longe de ser o único da sua espécie presente nas redes sociais – tanto que foi já criado o termo pet-influencer, isto é, animais de estimação que são influencers. Perfis de cães e gatos populares, como Marnie the Dog (1,5 milhões de seguidores) ou The Grumpy Cat (2,6 milhões de seguidores), têm demonstrado o poder de atrair milhares de seguidores, tornando-se, inclusivamente, poderosas ferramentas de marketing para as marcas.

“Sou contactada diversas vezes e até já recebi, entre roupa, colares, comedouros, biscoitos, coleiras e camas, um aspirador caríssimo de uma marca de renome”, conta Maria Ângela, que prefere promover negócios com pouca expressão nas redes sociais ou associar-se a causas.

Embora seja uma fonte de ganhos, também é uma plataforma onde se esclarecem dúvidas, pedem conselhos e fazem amigos, garante. “Fiz um post a auscultar a opinião dos seguidores sobre se deveria, ou não, castrar o Artur. Fiquei surpreendida com a quantidade de respostas que recebi”, conta, indicando que optou pela castração química, procedimento de que tomou conhecimento através desse post. “É certo que a presença nas redes sociais exige assiduidade e dedicação, mas a verdade é que pode ser muito compensadora.”

De golas altas a capas para a chuva, Artur exibe, no Instagram, parte de um generoso guarda-roupa que lhe permite várias opções de estilo. “Digo muitas vezes que o meu cão precisava de um closet só para ele”, brinca. Maria Ângela começou por adquirir a roupa por graça – “porque lhe ficava bem” –, mas rapidamente compreendeu que também se tratava de uma necessidade. “Os teckel são cães com algumas particularidades: não gostam de passear quando está a chover e são particularmente sensíveis a temperaturas baixas, pelo que é necessário mantê-los aquecidos.”

Maria Ângela Gomes com Artur. A conta de Instagram que a gestora de marketing criou para o teckel já conta com quase 40 mil seguidores

Do escritório ao banco: espaços pet-friendly

O intensificar da relação humano-animal é visível em casa, mas pode estender-se aos restaurantes, lojas e até locais de trabalho. Na Plot, os cães são sempre bem recebidos. Chanel é até capaz de ser o elemento mais assíduo do escritório, brinca António. “Acabam por humanizar o ambiente”, diz o administrador da agência.

Todos ganham: os donos deixam de carregar a preocupação de terem os animais sozinhos em casa; o ambiente da empresa melhora, com colaboradores focados; e o cão interage com outras pessoas e animais ao longo do dia, com direito a passeios regulares. Até os clientes ficam satisfeitos: “Alguns queriam ter reuniões aqui por saberem que temos cá os cães.”

A tendência pet-friendly prolifera em todo o mundo, ainda que Portugal esteja um passo atrás, salienta Maria Ângela: “O nosso país ainda não tem a cultura pet-friendly muito instituída, pelo que são poucos os espaços que aceitam efetivamente a presença de cães, em especial os de porte maior.”  Ainda assim, há sinais de progresso – e não é só nas áreas criativas.

Em junho, o Banco Montepio abriu os primeiros balcões pet-friendly, em Lisboa (Benfica) e Aveiro. Uma ideia que surgiu de forma “natural”, considerando o caminho que a marca vem percorrendo: “O banco tem desde sempre um papel social e é reconhecido pelo contributo à sociedade”, explica Tânia Madeira, diretora de comunicação e marca do Banco Montepio. “Ter o primeiro balcão pet-friendly faz jus ao banco de causas que somos desde 1844 e vai ao encontro das preocupações de muitas pessoas para quem a liberdade de ir ao banco e levar o seu animal de companhia é agora uma realidade nestes balcões.”

Para garantir o bem-estar de todos há regras, a começar pelo número de animais – só pode lá estar um de cada vez. “Durante toda a visita, o animal deve circular com uma trela curta, não extensível, ou devidamente acondicionado, em função das suas características, e é obrigação do responsável pelo animal de estimação garantir que, durante a visita, o animal está sob sua supervisão próxima a todo o momento.”

Ana Gomes adaptou a casa para dar conforto aos quatro gatos. Uma gateira automática capaz de ler chips garante que o mais novo, Figo, sai e entra em casa livremente.

Será que todos os produtos fazem bem aos animais?

Com a garantia de que o cão gosta e beneficia em estar vestido, Maria Ângela encontrou a desculpa perfeita para se perder em outfits para animais quando navega nas redes sociais. “Já comprei muitas peças de valores avultados.” Mas não de alta-costura, frisa. Da Fendi à Gucci ou Hermés, vão-se sucedendo as marcas de luxo com coleções específicas com produtos para cães e gatos, como roupa, coleiras e trelas. “Um gato não gosta de coleiras, não quer andar vestido, nem sequer vou falar nos guizos”, diz Ana Gomes. Apesar de ter o nome da casa de alta-costura mais famosa do mundo, Chanel não anda vestida: “Isso é mais vaidade dos donos do que necessidade dos cães”, considera António Domingues.

No campo dos brinquedos, concluiu que não vale a pena inventar muito: “São ossos e bolas de ténis.” Artur, apesar de duas cestas em casa repletas de brinquedos, também tem uma clara preferência: “Não há brincadeira que o satisfaça mais do que correr atrás de uma bola.”

Ana observa um claro “aproveitamento do mercado”, que usa as preocupações dos donos para criar produtos desadequados, que podem até ser prejudiciais. “Há sites onde vejo coisas que são um atentado ao animal”, diz, dando como exemplo capinhas para as unhas dos gatos ou os kits, hoje muito em voga nas redes sociais, que permitem que o gato faça as suas necessidades na sanita, como os humanos.

“É muito engraçado de ver mas completamente antinatural, porque o gato gosta de cobrir, instintivamente, as suas fezes e o xixi por causa dos predadores. Temos de ter sempre em conta a natureza do animal que temos em casa.” Seja no caso dos gatos ou dos cães, os animais precisam de brinquedos que respondam aos seus instintos: no caso dos cães, será roer; no caso dos gatos, será caçar.

Segundo a diretora de marketing da Goldpet, este tipo de produto, que considera as necessidades do animal, também é presença assídua nas lojas: “O mercado de brinquedos e acessórios também inovou muito nos últimos anos, havendo agora maior preocupação com o bem-estar e o estímulo mental do animal.”

Uma preocupação ainda mais premente nas cidades: “Em ambientes urbanos, onde os lares são, normalmente, mais pequenos e os animais passam algumas horas do dia sozinhos, notamos que há uma maior preocupação com o estímulo mental e físico dos animais, havendo uma maior procura por produtos anti-stress”, acrescenta, indicando que estes vão de brinquedos a sprays ou difusores que acalmam os animais.

Foi consciente de que os gatos se tornam mais ansiosos perante o tédio que a treinadora animal “gatificou” a sua casa quando vivia num apartamento – isto é, adaptou a casa aos animais, garantindo entretenimento que fosse capaz de estimular os seus comportamentos naturais. “Comprei paus de cerca e corda de sisal e criei estruturas para os gatos poderem arranhar e trepar. Pus prateleiras nas varandas para os gatos terem para onde subir e descansar. Cheguei a encher a casa de caixotes porque um dos gatos estava a ter dificuldades de adaptação – e os gatos precisam de lugares onde se sintam escondidos e seguros.”

Também tem os clássicos ratinhos e bolinhas, mas garante que os gatos se entretêm com os objetos mais mundanos de uma casa – incluindo rolinhos de papel ou de alumínio. “É como os bebés que, quando estão a descobrir o mundo, preferem objetos da casa aos brinquedos feitos para eles.”

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Quanto gastam os donos com os animais?

À proliferação de produtos, somam-se os serviços. Ana presta um deles: além de treinadora, acalma as ânsias dos donos que vão de férias sem os cães e gatos. É pet sitter: vai a casa dos clientes cuidar e fazer companhia aos animais – no caso dos cães, passeia-os as vezes que foram combinadas previamente com os tutores; no dos gatos, muda a areia, confirma se há ração e brinca. Com esta experiência atesta a preocupação crescente dos donos: “Chegam a programar a vida em função do bem-estar dos animais.”

António Domingues faz muitas férias fora de Portugal e não leva Chanel. “Ela é muito medricas, ia ficar muito assustada”, diz. Mas encontrou uma ótima solução: uma espécie de hotel de cães, um terreno onde os animais podem andar livremente, com espaço de sobra para correrem. Artur já andou na creche, mas rapidamente revelou preferir o conforto de casa: “No início, levava-o à creche uma vez por semana. Era uma forma de ele socializar e também de lhe preencher o dia com atividades com outros cães que o deixassem satisfeito”, conta. “Depressa desisti. O Artur é um cão caseiro, gosta de estar no seu porto seguro. Senti que não apreciava muito que o deixasse na creche e que não gostava de socializar com cães de porte maior.”

Entre as idas anuais ao veterinário (muitas vezes com exames e vacinas), hotéis ou pet sitters, comida de qualidade e os seguros de saúde, esta preocupação com os animais reflete-se nos orçamentos. No caso dos tutores de cães, as despesas devem ultrapassar os 100 euros por mês. Com quatro gatos, Ana Gomes, formada em contabilidade, dá-nos uma estimativa anual: são 2 350 euros anuais, ou seja, cerca de 15% do seu orçamento.

Estaremos a humanizar demasiado os animais de estimação? Maria Ângela Gomes está constantemente a ouvir críticas à forma como cuida de Artur. “Desde logo a minha mãe, que gosta muito dele, mas a quem faz alguma impressão a forma como lhe damos tanto afeto”, conta. “A expressão ‘é apenas um cão’ oiço-a muitas vezes, mas para mim é o ‘meu menino’, como gosto de retorquir.” Sente que ainda há muitas pessoas que defendem que “o animal deve ser tratado como tal”, mas questiona o significado deste princípio: “A vida dos cães é tão curta em relação à nossa e tão dependente de nós que temos a obrigação de assegurar o seu bem-estar quando os acolhemos nas nossas casas.”

A ponderação e informação são dois passos absolutamente essenciais que os futuros tutores devem cumprir antes de adotar um animal: “Ter um animal de estimação é, sobretudo, uma grande responsabilidade. Requer disponibilidade – incluindo financeira –, paciência, capacidade de adaptação e por vezes priva-nos, inclusivamente, de gerirmos a nossa vida nas circunstâncias em que o fazíamos até à sua chegada”, diz Maria Ângela.

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