“Já nos habituámos a não contar com os seres humanos”

“Já nos habituámos a não contar com os seres humanos”
6 minutos de leitura
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As tecnologias estão a provocar uma fratura na humanidade e podem criar uma elite que vai dominar e negociar com as máquinas, por um lado, e uma multidão que será como “chimpanzé num zoológico”, por outro. Em entrevista exclusiva à Revista Montepio, o filósofo francês Jean-Michel Besnier fala sobre transumanismo, tecnologia e os novos desafios à natureza humana.

Começou a interessar-se pela relação entre a humanidade e a tecnologia quando lecionava na Universidade de Tecnologia de Compiègne, no final do século XX. Ficou impressionado com a rapidez com que a tecnologia se impôs nas nossas vidas desde então?

Sim, sem dúvida. Quem imaginaria, no início do século, que seria obrigatório possuir um computador para declarar impostos, reservar um comboio ou marcar uma consulta médica? A tecnologia tornou-se imperativa: dá ordens e somos obrigados a obedecer. Tudo aconteceu muito rapidamente e já nos habituámos a não contar com seres humanos para responder às nossas necessidades. Veja-se as cabines de teleconsulta médica que se instalam nos grandes armazéns.

A fusão entre o homem e a máquina pode redefinir o conceito de identidade?

Não. O futuro ciborgue do ser humano sinaliza sobretudo a vitória da “liberdade morfológica” reivindicada por alguns transumanistas, ou seja, a obsolescência de uma conceção da existência baseada na identidade. Estamos a abrir caminho para uma identidade digital, resultante dos nossos percursos no ciberespaço e cada vez mais influenciada pelas escolhas de hibridização ou de cirurgia estética que fizermos. A cultura dita “trans-” pretende consagrar a derrota do essencialismo sobre o qual assentava o conceito de identidade.

O transumanismo promete ultrapassar os limites biológicos humanos. Trata-se de uma evolução ou de uma ameaça?

Segundo os transumanistas, trata-se de um progresso – mas um progresso que nos levaria a superar os limites do humano (nascimento, dor, doença, envelhecimento e morte). Esse progresso seria, na verdade, uma rutura rumo a um pós-humano que pode ser visto como uma ameaça.

A busca da imortalidade tecnológica pode desvalorizar a experiência humana e a finitude da vida?

Sem dúvida. A imortalidade visada pelas tecnologias não é humana. É mais animal, pois procura perpetuar os nossos metabolismos biológicos: é a besta em nós que sobreviveria no ser biónico. Com o carregamento da consciência para suportes imateriais, o corpo seria eliminado, mas nem por isso nos tornaríamos divinos. Em qualquer dos casos, seja biónico ou ciborgue, a experiência humana, tal como a cultura universal a testemunha, seria arruinada.

O transumanismo ignora aspetos filosóficos e éticos essenciais sobre o que significa ser humano?

Sem dúvida. Na sua versão mais radical (a de Ray Kurzweil, na Califórnia), a ignorância da filosofia é evidente. Quanto à ética, a ideia de subordiná-la às pretensas lições das neurociências (o moral enhancement) para determinar os comportamentos morais diz muito sobre o pouco valor dado à responsabilidade e à dignidade.

Tem uma vasta experiência no diálogo com engenheiros e cientistas da informática. Como se pode ensinar ética a estas profissões que transformam a vida da humanidade?

Expondo-os desde cedo ao pensamento dos filósofos, para que possam contextualizar os problemas que pretendem resolver. Por exemplo, o problema mente-corpo, a questão da consciência, as definições de inteligência individual e coletiva. Também lhes devemos proporcionar uma visão histórica da ciência e da tecnologia: nada melhor do que a história para afastar o dogmatismo e a complacência. Quando dirigi o departamento de ciências humanas da Universidade de Compiègne, observei que os estudantes de engenharia informática que passavam por lá eram muito recetivos à cultura filosófica e histórica, que os ajudava a situar o seu saber técnico (código, algoritmos…) num contexto existencial.

REVISTA MONTEPIO

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Se alterarmos o conceito de envelhecimento e até de morte, de que modo isso afetaria o sentido da vida?

A vida tem sentido se for desprovida de duração e de morte? Ulisses recusou a imortalidade oferecida por Calipso porque não acreditava nisso, e tornou-se um modelo de sabedoria para os séculos seguintes. O conceito de sentido implica direção e fim, ou seja, um tempo que flui e deve terminar. Os transumanistas, que consideram a morte uma doença, têm uma visão totalmente negativa da vida. Deviam ler Nietzsche ou ouvir Mozart.

Acredita que existe o risco de criação de uma elite pós-humana, separada do resto da humanidade?

As tecnologias irão cada vez mais criar uma fratura na humanidade. Alguns tecnoprofetas, como Kevin Warwick, foram bastante diretos ao afirmar que haverá uma elite que dominará a inteligência artificial e saberá negociar com as máquinas. E depois há os outros, que não serão mais do que os chimpanzés dos nossos zoológicos. As manifestações do culto do poder, representadas atualmente por Elon Musk, são reveladoras – infelizmente.

O transumanismo pode ter impacto nas desigualdades sociais e económicas? Como?

Há um transumanismo soft, que se assemelha mais a um hiper-humanismo, e que defende um futuro de igualdade. Em França, a Associação Transumanista, presidida por Marc Roux, argumenta que as inovações tecnológicas vão democratizar-se e tornar-se acessíveis a todos, tal como já acontece com os smartphones. Eu sou menos otimista e temo o egoísmo dos mais ricos, que poderão querer abandonar o planeta para colonizar o espaço, sem qualquer escrúpulo. Mesmo que este cenário pareça fantasioso, reflete a mentalidade dos visionários de um futuro alimentado pelas tecnociências.

Tenho uma filha pequena. Como posso garantir que ela terá as mesmas capacidades humanas que eu tive na infância? Ela crescerá vendo a inteligência artificial como algo natural. Devo preocupar-me?

Depende do que entende por “capacidades humanas”. A sua filha não será uma réplica sua: desenvolverá competências cognitivas e sensório-motoras diferentes, adaptadas ao ambiente tecnológico em que crescer. E isso será melhor para ela – a menos que prefira vê-la marginalizada (como o chimpanzé de há pouco). Já se lamenta a crescente incapacidade das pessoas para a leitura profunda, aquela que permite absorver, refletir e revisitar um livro. A sua filha conseguirá e quererá ler Guerra e Paz, de Tolstói, quando for constantemente estimulada por ecrãs e sinais? Talvez não devamos preocupar-nos. O cérebro da sua filha adaptará os seus circuitos neuronais aos estímulos que receber. Cabe-lhe decidir se deve ser nostálgico e defender que “antigamente é que era melhor”.

Na tomada de posse de Donald Trump como presidente dos EUA, todos os CEO das grandes empresas tecnológicas estavam presentes. Isso significa que veremos grandes mudanças na regulação da tecnologia nos próximos anos? Devemos preocupar-nos? E como esta mudança afetará a nossa relação com a longevidade?

Devemos estar preocupados, pois a aliança entre oligarcas e políticos não favorece a democracia. Na sua primeira campanha, em 2016, Trump concorreu contra um candidato do Partido Transumanista, Zoltan Istvan, cujo programa se resumia a eliminar impostos e incentivar a pesquisa sobre longevidade. Ele teve alguma visibilidade entre os libertários, mas nada comparável ao sucesso de Musk, Thiel, Zuckerberg e outros, que rejeitam regulamentações e querem acabar com as instituições e o Estado de direito. A política, apoiada nas tecnociências, torna-se irrelevante, e apenas os mais fortes prosperam. A democracia passa a ser vista como obsoleta e culpada de todos os entraves ao progresso dos “melhores”.

Jean-Michel Besnier na primeira pessoa

Qual é a pergunta que os jornalistas mais lhe fazem?

“É tecnófobo (ou bioconservador)?” Recuso-me a ser forçado a uma lógica binária (sim/não, 0/1). Defendo que devemos domesticar as máquinas sem nos sujeitarmos à sua estupidez funcional.

Onde encontra as suas ideias?

Na filosofia, literatura, ciência, jornais e notas que arquivo.

O que o inspira?

O medo de que a vida interior perca importância e nos tornemos reféns dos algoritmos.

O tempo para pensar é um luxo?

Sim, e faço questão de abusar dele.

Gostaria de ter vivido noutra época?

Não. Tive o privilégio de viver uma era fascinante.

Com o apoio do MAM, conferência BEIRA regressa a Viseu

A segunda edição da BEIRA, ciclo de conferências que homenageia Azeredo Perdigão e que conta com o apoio do Montepio Associação Mutualista, arrancou em março com o  filósofo francês Jean-Michel Besnier. Até ao final do ano, outros três oradores levarão a Viseu ideias para promover o pensamento crítico. São eles o espanhol Josep Borrell, ex-Presidente do Parlamento Europeu, entre outros cargos relevantes, o italiano Ivo Diamanti e o ítalo-suíço Giuliano Empoli.

Em 2024, a conferência contou com a presença de nomes como o espanhol Daniel Innerarity, o italiano Maurizio Ferraris e o francês Gilles Lipovetsky. Acompanhe todas as novidades da conferência BEIRA na Revista Montepio e no site montepio.org.