O que ganhamos em fugir à rotina?

O que ganhamos em fugir à rotina?
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rotina organiza o caos e até pode ser um estimulante natural da criatividade, contribuindo para a nossa saúde mental ao reduzir a ansiedade e o stress. Mas há uma forma de ter mais prazer no dia a dia, mantendo o cérebro feliz. Saiba qual.

“Filipe, podemos falar agora?” Eram seis da tarde de uma segunda-feira gélida quando Filipe Sambado me atendeu o telefone para falar de rotina. “Atrasei-me e ainda não cheguei a casa. Podes ligar-me daqui a uma hora?” Habitualmente, Filipe chega a casa pouco depois das quatro da tarde, depois de ir buscar a filha Celeste à escola. “Excecionalmente, prolongo [o trabalho] para lá desta hora, quando tenho um prazo apertado.” Era o caso: estava a acabar de trabalhar na adaptação para disco da banda sonora do concerto teatral Quis Saber Quem Sou, de Pedro Penim, cuja direção musical esteve a seu cargo.

Há oito anos que Filipe Sambado vive unicamente da música e, desde então, tem uma rotina mais tranquila. Vai levar a filha à escola, às dez, e trabalha seis horas. “Não tenho o dia muito organizado, mas tenho um horário de trabalho fixo no qual não mexo, não toco”, diz. Em casa, é tempo para estar com a família – a filha Celeste e a atriz Cecília Henriques –, fazer o jantar e descansar. Uma rotina substancialmente diferente da que tinha quando escreveu a música Joia da Rotina, primeiro single do álbum Revezo, lançado em janeiro de 2020. A música fala de um dia interminável e da ânsia de chegar a casa. “O disco representa muito isso: o prazer de estar confortável em casa. Não sou contra a ideia de rotina, mas faço questão de salientar que a coisa mais importante da rotina é o momento do regresso a casa.” A música critica também “o excesso de trabalho” que o artista sentia na altura. “Quando escrevi essa música fazia perche para televisão, um trabalho que durava doze horas por dia.” Hoje, Filipe consegue organizar a sua vida, mesmo que os desafios sejam outros. “É um privilégio muito grande [trabalhar só para a música], mas as frustrações são semelhantes. Aquela coisa de estarmos fartos do trabalho, e mais dissociados, isso surge à mesma. Mesmo estando a fazer o que mais gostamos. Porque a frustração vem de um sítio mais íntimo.”

Na música Joia da Rotina, Filipe Sambado fala de um dia interminável e da ânsia de chegar a casa. Na altura, o compositor trabalhava 12 horas por dia como perchista.

A rotina é mesmo joia

A rotina cansa? Torna o nosso dia monótono? Quando Filipe Sambado saía de casa “de cabeça para baixo às sete da matina”, sabendo que só regressaria doze horas depois, não era a rotina que estava em causa, mas o excesso de trabalho. “Não estou contra a rotina por si só, porque ela serve para organizar o caos. E mesmo quando fugimos dela, é com essa orientação que podemos regressar a uma organização qualquer”, esclarece.

Há quem tenha o mesmo dilema. No filme Feitiço do Tempo, de 1993, Bill Murray revive o mesmo dia vezes sem conta: é o Dia da Marmota, ou Groundhog Day. O enfado leva-o à loucura, mas não é devido ao despertador tocar sempre às seis da manhã – é por não sentir prazer no que fazia. “Essa é a questão: por vezes, não estamos a ter prazer”, explica a psicóloga clínica Renata Chaleira. “O nosso cérebro adora que estejamos sempre a fazer o mesmo. Adora a rotina. Se não sentimos prazer no que fazemos, tentamos mudar um bocado: vamos ao ginásio, lemos um livro, fazemos uma atividade.”

Quando entramos na rotina, o nosso cérebro tranquiliza-se e prepara-nos para o próximo dia. “Temos menos ansiedade, menos depressão e menos psicopatologias. Tudo o que nós queremos e, curiosamente, que a sociedade diz para não fazermos”, brinca. A psicóloga da CUF, parceira do Plano Montepio Saúde, destaca a importância de termos horários na nossa vida. “A rotina é altamente organizadora da nossa saúde mental e devemos manter um horário estipulado de segunda a sexta: para dormir, para estudar ou para comer. Mas esse horário também pode prolongar-se para sábado e domingo.” Ter uma rotina organizada reduz o grau de ansiedade e a inflamação dos tecidos. “Faz com que consigamos dormir melhor, por exemplo”, afirma Renata Chaleira. Mas se a rotina é tão fundamental para a nossa saúde mental, então o que ganhamos em fugir-lhe?

“O nosso cérebro adora que estejamos sempre a fazer o mesmo. Adora a rotina”

Renata Chaleira, psicóloga clínica

Viver dia a dia cansa

Todos os meses, Mariana Silva muda a rotina. Por vezes, está a trabalhar em Cascais, de onde é natural. Outras, está na ilha do Sal, em Cabo Verde. Mas quando falou para a revista Montepio, no mês de janeiro, preparava-se para passar uma temporada na Ásia. “Vou começar na Tailândia e depois sigo para outros países.” Mariana, que já tinha vivido em países como Espanha, Filipinas, Jordânia, Nepal, Japão ou Coreia do Sul, tornou-se nómada digital na pandemia e começou por passar cinco meses em Braga.

Em setembro de 2022, quando foi contratada para a Rivo Commerce, multinacional norte-americana que não tem escritório físico, disse a si própria que não podia desperdiçar esta “oportunidade única”. “Não tenho nada que me prenda a Portugal, é experimentar ao máximo.”

Nesse ano, alugou um T2 na ilha do Sal, a mais turística do arquipélago de Cabo Verde, e preparou-se para passar dois meses com piscina, praia e muita multiculturalidade. Mas com um quarto livre em casa, utilizou a rede social profissional LinkedIn para encontrar alguém para dividir o espaço – e as despesas e aventuras. “Responderam quatro pessoas e cada uma veio por duas semanas, separadas”, recorda.

O sucesso da iniciativa motivou Mariana a expandi-la e a organizar o projeto Os Nómadas do Sal. Dez pessoas responderam ao desafio e passaram duas semanas a trabalhar na ilha. “Foram nove portuguesas e uma espanhola que não conhecia de lado nenhum”, conta a webdesigner. “Foi uma experiência incrível. Durante o dia trabalhávamos, mas também fazíamos piscina. O fim de semana estava reservado para experimentar várias atividades, conhecer a ilha de bicicleta e fazer voluntariado.”

Mariana diz que todos adoraram a experiência, mas apenas duas das participantes permanecem nómadas digitais, um modo de vida com menos rotinas e, por isso, menos organizado. “A maioria voltou para casa e continuou a vida rotineira”, diz sem mágoa. “A minha missão é outra: inspirar mais mulheres a viajarem sozinhas.”

Apesar de não ter horários fixos para trabalhar, Mariana diz que tem tempo para se organizar e planear o dia. “Mas também trabalhei muito a ansiedade, na terapia. Agora tento viver mais o presente e não me custa pensar que tenho de estar sempre um passo à frente da vida, a planear as coisas que vou fazer dentro de uma semana, um mês, três meses.”

A psicóloga Renata Chaleira, que trabalha muito com perturbações de ansiedade, diz que a primeira regra é fazer uma boa gestão do nosso horário. “Os ciclos são importantíssimos e manter os mesmos horários é fundamental.” E dá o exemplo do sono. Deitar e levantar sempre à mesma hora é basilar, mesmo ao fim de semana. “Se, num dia, nos deitarmos às três da manhã, devemos acordar à mesma hora. Vamos dormir menos, é certo, mas à noite reorganizamos os ciclos de sono.”

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Mais que rotina, coisas que nos dão prazer

“De manhã sou eu. Só pego na música à tarde.” Olavo Bilac admite que nem sempre teve rotinas, mas hoje já não vive sem elas. “De manhã tenho de ir ao ginásio ou andar de bicicleta, o que for. À tarde começam os ensaios, estou a ouvir alguma coisa, uma composição. Quando estou a gostar, dura a noite fora”, descreve. O músico português, cabeça de cartaz, com a sua banda Santos & Pecadores, da edição de 2025 do Montepio Às Vezes o Amor, diz até existir uma ligação entre a rotina e a criatividade, se bem que é sempre incerto quando chega a inspiração. “A coisa não aparece de repente. Mas há que criar rotinas para a criatividade nascer”, explica.

Segundo a psicóloga Renata Chaleira, devemos saber sempre o que vamos fazer no dia seguinte, mesmo que seja algo fora da caixa. “O new age, sair da rotina e procurar evasões é tudo muito bonito. Mas tem de ser uma rotina programada e organizada.” Pontualmente, podemos ter uma surpresa que promova a adrenalina, mas sempre controlada. “Nem todas as pessoas gerem bem a adrenalina. Nem todos gostam de andar de montanha-russa, nem fazer parapente ou desportos radicais”, explica Renata Chaleira.

Apesar de ter uma música com o sugestivo nome Subo a Montanha, Filipe Sambado prefere outras adrenalinas, mais terrenas. O facto de ter um tempo fixo para trabalhar liberta-o para outras coisas – a vida familiar e social –, ainda que a criatividade não escolha horas. “Por vezes, em casa, penso em música. Até em situações de sonolência profunda surgem ideias. Mas há um trabalho de rigor que tem de ser circunscrito a qualquer coisa”, refere. Ou seja, pode ter uma ideia para uma música à noite, enquanto janta em família, mas apenas a explorará no dia seguinte, no seu “trabalho” oficial das 10h00 às 16h00. E mesmo que perca alguma inspiração, sabe que ela voltará. “Surgem ideias a toda a hora. Por isso, se perder algumas não tem grande importância. O que me diferencia é a forma como trabalho as ideias, não o facto de elas serem únicas. Não é matemática.”

Quer reduzir a ansiedade? Socialize

Se ter rotinas ajuda a reduzir a ansiedade e diminui o cortisol, hormona responsável pela resposta ao stress, estar com familiares e amigos pode ter um papel muito importante em manter a saúde mental. “Há um estudo, que saiu no início de 2024, segundo o qual a socialização reduz em dez anos o Alzheimer. Mais do que sair da rotina, devíamos sair da rotina e fazer coisas com outras pessoas”, explica Renata Chaleira. Fazer programas com amigos, marcar jantares, jogar futebol com as mesmas pessoas, são formas diferentes de socializar e às quais deveríamos prestar mais atenção. “É mais importante socializar do que ter adrenalina. A não ser, claro, que as pessoas gostem mesmo [de fazer desportos radicais, por exemplo]”, continua a psicóloga.

É importante, também, perceber como as novas tecnologias podem ajudar-nos a reduzir a ansiedade. Por exemplo, podemos usar o Google Calendar a nosso favor e organizar a vida à semana. “Até pode ser de três em três dias”, refere a psicóloga. O Whatsapp e as redes sociais podem ajudar-nos a marcar encontros com os nossos amigos, a socializar. “Não percebo a demonização das redes sociais porque elas aproximam-nos das pessoas que estão longe.”

* com Rute Marques

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