m Portugal, 70% dos jovens até aos 29 anos ainda vivem em casa dos pais. Muitos regressaram após estudar fora ou terminarem o arrendamento da sua habitação, por razões financeiras. Quais os principais desafios e como ajudar a que se emancipem financeiramente?


Ana adiou o mais que pôde. Mas, em junho de 2024, regressou ao seu quarto da infância e adolescência em casa dos pais. Tem 36 anos, investiu anos na carreira académica, enquanto bolseira de investigação, e reconhece: “A minha situação é específica, mas reflete as dificuldades de muitas pessoas na minha faixa etária. Da minha experiência, são poucas as pessoas que conseguem ter habitação própria ou sequer arrendar casa sozinhas.”
Os jovens portugueses só têm independência financeira para deixarem o ninho paterno na véspera de completarem 30 anos – mais precisamente aos 29,7 anos, de acordo com o Eurostat, o gabinete de estatísticas da União Europeia. Os preços do mercado da habitação, onde a oferta é insuficiente para a elevada procura, ajudam a explicar este número acima da média da União Europeia – que, em 2022, estava nos 26,4 anos. E muitos, como Ana, acabam por ter de voltar.
Fazer face a uma despesa tão pesada como a renda ou um empréstimo é precisamente o maior desafio de Ana neste momento. Depois de anos no Porto, a estudar e a viver numa casa arrendada com o namorado, o fim da relação obrigou-a a procurar uma solução enquanto escrevia a tese de doutoramento. Ainda conseguiu ficar um ano num quarto alugado a uma amiga, que estava fora. Mas com o regresso desta, a procura por uma alternativa revelou os valores altíssimos das rendas, com um estúdio no Porto a ultrapassar os 800 euros. Nessa altura, a bolsa já tinha terminado e as poupanças estavam a esgotar-se. Para os pais de Ana, o passo mais lógico seria o seu regresso imediato a casa. “Mas aguentei o máximo que pude”, conta a jovem, identificando-se com um certo sentimento de derrota por ter de fazer esta escolha. “É quase um falhanço na aposta de plano de vida.”
POUPANÇA PRAZO 5.1
Poupe hoje para a casa de amanhã
Aceitar e reorganizar-se
Para Cláudia Ganhão, coach e mentora de mudanças para mulheres, estas situações não devem ser entendidas como “um recuo, mas como uma transição até se voltar a restabelecer uma normalidade.” A psicóloga Cátia Silva corrobora: “Para muitas pessoas, dar este passo atrás pode ser entendido como negativo, porque depende das expectativas que se foram criando para o projeto de vida. E, muitas vezes, voltar a casa não está incluído nelas.”
Num primeiro momento, diz, pode reconhecer-se uma “sintomatologia mais depressiva”, mas que não significa depressão. “Estar mais triste, não ter vontade de fazer as coisas, isolar-se – até porque não há dinheiro para sair com os amigos –, ansiedade por chegar o fim do mês e ter as contas por pagar.” Em consulta, a psicóloga vai trabalhando esse conceito de “desesperança”, procurando perceber como pode reajustar-se a realidade. É importante, refere, nunca perder o contacto social com os amigos, mesmo que não se possa ir jantar com eles. Ou continuar a fazer exercício, mesmo que não se consiga pagar o ginásio.
No caso de Ana, reorganizar o quarto, armazenando os objetos da infância, ajudou neste processo de adaptação à sua nova realidade. Ter um objetivo também. Ana quer voltar a sair de casa dos pais. Sabe, por experiência de amigos, que já não é em Lisboa ou sequer na Margem Sul que as casas estão mais baratas. Há quem esteja agora a mudar-se para a zona Oeste, para a Lourinhã, por exemplo. “Pode ser a chave para encontrar a casa ideal dentro do orçamento disponível”, refere Ruben Marques, porta-voz do site Idealista, um agregador de casas para comprar e arrendar. “Muitas vezes, explorar zonas mais afastadas do centro das grandes cidades permite encontrar preços mais acessíveis e melhores condições.”
Nos arredores de Lisboa, onde cresceu, Ana tem visto casas a 1 milhão de euros. E o boom imobiliário é notório. Só ali na rua dos pais, há cinco casas em construção. E já fez as contas. Se tiver dois empregos e uma amiga aceitar o desafio de viverem juntas, conseguirão arrendar um apartamento.
Elisabete também reside na área da grande Lisboa. Por isso, sabe que para sair da casa da mãe, onde está com a irmã, terá de ir para longe, onde os valores para comprar são mais baixos – o que é uma vantagem a vários níveis: não só porque, como auxiliar de saúde, recebe um salário próximo do mínimo, como sabe que, aos 42 anos, pode ter maiores dificuldades no acesso a um empréstimo de valor maior. Há umas semanas, encontrou uma pequena moradia a um preço muito bom, no norte do país. “Há casas a 50 mil euros. Adorei a zona e eu conseguiria trabalhar ali, porque tem dois hospitais próximos. Como era um rés-do-chão e primeiro andar, poderia viver num e alugar o outro.” Elisabete traçou o seu plano, mas quando respondeu ao anúncio já era tarde (esta é, aliás, uma das dicas do Idealista para conseguir sobreviver-se a um mercado competitivo – ver a caixa). Essa casa, conta, “já foi reservada. Mas sei que há mais assim”.
Mudar-se – e para outra região do país – não é novidade para Elisabete. Esta auxiliar de saúde só saiu da casa onde cresceu aos 28 anos e nos doze anos seguintes mudou-se dez vezes, entre casas e quartos arrendados, incluindo na Margem Sul e até no Algarve. Apesar dos preços em conta (chegou a pagar 200 euros por mês por um T0) não recomenda a experiência, nomeadamente os problemas com os senhorios. Hoje, só encontra rendas três vezes superiores e tem um único objetivo em mente: comprar casa própria. “Passei por coisas muito desagradáveis. Com a subida dos valores do arrendamento, disse: não vou andar a trabalhar para pagar um quarto ou uma casa.” Como tinha a casa da mãe disponível, foi para lá há já dois anos, mas não está feliz: “Estou a viver ali contrariada”, confessa.
“Voltar a viver com os pais não deve ser encarado como um recuo, mas como uma transição até se voltar a restabelecer uma normalidade”
Definir um plano que se pode cumprir
Apesar das dificuldades, Elisabete tem uma vantagem do seu lado: um plano. O planeamento é essencial para as pessoas que se veem na situação de regressar a casa dos pais, sublinha a psicóloga Cláudia Morais. “É um plano que pode ser sujeito a múltiplas alterações, mas devemos ter a consciência do que vamos fazer. A ser uma escolha que se quer temporária, é importante, mas difícil, centrar a energia no plano. Mesmo que sejam pequenos passos.” A mentora Cláudia Ganhão chama-lhes “metas temporais definidas”.
“Mês a mês, temos de ver que passos vamos dar para que o nosso grande objetivo se concretize. Por exemplo, daqui a um ano regressarmos à independência. A pessoa tem esse objetivo na cabeça, mas se não traduz em ações concretas do dia a dia, os meses vão passando e nada acontece. E, muitas vezes, passa por um reajuste na forma de viver.”
Cláudia Ganhão já acompanhou duas mulheres que tiveram de regressar a casa dos pais após o divórcio. Ambas tinham filhos pequenos. O plano de ação teve, necessariamente, de contemplar o orçamento familiar e fazer algumas escolhas que permitissem uma poupança tendo em vista o objetivo que cada uma estabeleceu. Contudo, sublinha a coach, não devemos esquecer uma coisa importante: cuidar de nós. “Preciso de reduzir despesas, fazer esta mudança, mas também estamos numa fase de alguma carência e temos de descansar e permitir sermos mimados pelos pais. Deixar que cuidem de si um bocadinho.”
Neste ponto, a psicóloga Cláudia Morais acrescenta que também se deve “agradecer em voz alta” a quem está a receber o filho ou filha, que muitas vezes chega acompanhado da família. “Quando temos a consciência de que não estamos em nossa casa – apesar de serem pessoas que gostam de nós –, de que estamos a entrar no espaço do outro, cultivar esse sentimento de gratidão ajuda a navegar no espaço de adaptação e conflitos”, diz, recordando o exemplo das rotinas ou regras diferentes que existem. “Tenho exemplos de casais que voltaram a casa dos pais de forma temporária e havia tensões associadas ao facto de, para alguns pais, haver regras como não se poder sentar no sofá. Sobretudo quando há crianças, isto pode ser particularmente difícil de gerir. [Deve-se] tentar comunicar as necessidades, respeitando e lembrando que se está a ocupar o espaço do outro e reconhecer o quão difícil é para o outro”, aconselha.
“Tenho exemplos de casais que voltaram a casa dos pais de forma temporária e havia tensões associadas ao facto de, para alguns pais, haver regras como não se poder sentar no sofá”
Aproveitar a oportunidade
O ano de 2025 ainda será desafiante para Ana e Elisabete. Há sinais de um ligeiro aumento na oferta de casas, mas também existe a “expectativa de que os preços do mercado habitacional em Portugal continuem a aumentar, embora a um ritmo potencialmente mais moderado”, refere Ruben Marques. De acordo com o porta-voz do Idealista, “no último trimestre de 2024 a oferta de imóveis para venda aumentou 2%, enquanto a oferta de arrendamento registou um aumento expressivo de 59% no mesmo período. Apesar deste crescimento, a quantidade de imóveis disponíveis continua a ser insuficiente para satisfazer a elevada procura, especialmente nas grandes cidades, onde a escassez de habitação permanece um problema estrutural. Os preços mantêm-se elevados e fora do alcance da maioria dos portugueses”.
Há programas para quem tem entre 18 e 35 anos (como a garantia pública, com isenção do IMT) que dão sinais positivos. De acordo com o Banco de Portugal, o peso dos jovens nos novos contratos para habitação própria permanente foi de 47% desde agosto do ano passado. E as instituições estão também a identificar novas modalidades de habitação – o Montepio Associação Mutualista, por exemplo, vai comprar casas para arrendar aos seus associados. “Mais tarde o Associado pode adquiri-la, se o desejar”, explicou o presidente Virgílio Boavista Lima.
Como encontrar casa (e ficar com ela)?
Desde a pandemia que comprar uma casa é, também, uma prova de velocidade. As melhores alternativas são vendidas no próprio dia e há que ter uma estratégia para conseguir reservá-las. Ruben Marques, porta-voz do Idealista, sugere uma “abordagem proativa” ao mercado. Por exemplo:
- Criar alertas imediatos para novos anúncios, definindo filtros para o tipo de imóvel, preço e localização.
- Alargar a área de procura para além do centro das grandes cidades e ter alguma flexibilidade.
- Contactar de imediato o anunciante assim que um imóvel esteja disponível. “As melhores oportunidades são, muitas vezes, as primeiras a desaparecer.”
- Ter preparada toda a documentação necessária.
A questão financeira: TAN, spread são o quê, afinal?
Um conselho essencial para quem se encontra nesta situação é procurar saber mais, dominar os termos financeiros e as suas próprias finanças. A educadora financeira Rute Marques aprendeu esta lição com a sua experiência.
Em 2020, deparou-se com o dilema de ter de regressar a casa dos pais ou dos sogros. Ex-bancária, com um filho pequeno, a pandemia não foi meiga para o negócio na área do turismo que então tinha no Algarve. Com tudo parado, não havia trabalho. Não entrava qualquer rendimento e as despesas continuavam a existir. Teve de fechar a empresa, vender os bens e pedir ajuda à família. Também nessa altura, o senhorio da casa que arrendava a um preço muito acessível (cerca de 200 euros por mês) disse-lhe que precisava do imóvel para o filho. Encontrou outra casa, mas com um valor três vezes superior e que não conseguiria pagar. “Só não fomos para casa dos meus pais porque a minha mãe optou por ajudar-nos a pagar uma renda”, conta Rute que, cerca de cinco anos depois e graças ao apoio familiar, conseguiu ultrapassar esta fase. Aperceber-se de que as suas dificuldades tinham sido causadas também pela sua falta de literacia financeira motivou-a a estudar, tendo-se certificado como educadora financeira. Desde meados de 2024 que ajuda mulheres “a terem uma vida mais leve, livre e sã através das finanças comportamentais e da organização financeira”, como descreve no seu site e perfil do Instagram.
Tem percebido que, tal como acontecia com ela, existe muita iliteracia financeira em pessoas com todos os níveis de escolaridade. “Não existe preocupação em poupar, gerir melhor o dinheiro que ganham, estabelecer um orçamento, otimizar gastos. As pessoas preferem prazeres imediatos em vez de pensarem em ganhos vindouros mais benéficos, como ter tranquilidade financeira futura”, explica. Expressões ligadas aos empréstimos, como spread, TAN (Taxa Anual Nominal), TAEG (Taxa Anual de Encargos Efetiva Global) e FINE (Ficha de Informação Normalizada Europeia), entre outras, são desconhecidas ou interpretadas incorretamente. “Quando foi a subida das taxas de juro, as pessoas não perceberam que era uma situação expectável, que poderia acontecer a algum momento, e nem sequer pensavam no que lhes iria acontecer”, afirma.
A maioria das pessoas que a contactam tem o dinheiro contado todos os meses e muitas vezes situações complicadas de endividamento (créditos pessoais, má utilização dos cartões de crédito). Além de sugerir que se procure um intermediário de crédito, a educadora financeira entende que um dos primeiros passos é reduzir as despesas – o que “muitas vezes não é possível”, porque o orçamento mensal já está nos mínimos. Aconselha, por isso, a que se aumentem os rendimentos ou se conjugue isso com a redução das despesas. Por exemplo, tirando uma certificação ou formação que aumente a sua qualificação e que permita ter uma promoção na empresa onde se encontra, encontrar um part-time compatível com o horário de trabalho ou até procurar outro trabalho mais bem pago.
Também é contactada por famílias que têm rendimentos acima da média, mas um estilo de vida bastante superior. “Nestas situações, por norma, há uma grande margem de poupança e transformação.” Saber onde se gasta, definir um orçamento familiar e prover as despesas anuais são passos importantes nestes casos. Rute Marques entende ainda que se devem criar objetivos financeiros de forma realista, “para que não se caia no ciclo da desmotivação e se acabe por desistir”.
Além desta parte fundamental da organização financeira, há algo que Rute Marques considera tão ou mais importante: o autoconhecimento. “Devemos tê-lo em consideração, para que seja maior a probabilidade de atingir e alcançar com sucesso os objetivos e metas financeiras estabelecidos.” Com a meta de sair de casa dos pais em vista, seja para arrendar ou comprar casa própria, ter um plano, objetivos realistas para a sua personalidade e capacidade, são, portanto, passos essenciais. O resto será a vida, e a sorte, a ditar.
“[Em 2020] só não fomos para casa dos meus pais porque a minha mãe optou por ajudar-nos a pagar uma renda”
Como restabelecer as suas finanças?
A educadora financeira Rute Marques lista os três principais pilares para decisões financeiras mais assertivas, que devem sempre adequar-se para cada família ou indivíduo:
- Tomada de decisão. Perceber quem é o nosso eu financeiro, como tomamos decisões, quais os nossos valores, como direcionamos os nossos comportamentos e como podemos começar a moldá-los.
- Organização financeira. Saber quanto ganhamos e quanto gastamos, que despesas podemos negociar, reduzir ou eliminar; estabelecer e cumprir um orçamento, se necessário fazendo ajustes. É algo que requer prática e consistência.
- Planeamento financeiro. Definir o que é importante e prioritário, de acordo com o nosso orçamento, saber para onde queremos ir e com que ferramentas.