A outra metade da minha vida

A outra metade da minha vida
12 minutos de leitura
Fotografias de Bruno Barata, Alexandre Cabrita, Ricardo Meireles e Rodrigo Cabrita
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F

azer dupla com alguém é como jogar no totoloto: podemos acertar em alguns números, mas é difícil acertar na chave toda. Existem exceções. Estas são as histórias de quem fez ou faz parte de uma grande dupla e encarou parte da sua vida a quatro mãos, a duas vozes ou até a duas mãos e duas patas.

Judite Mota e Pedro Ferreira

A arte de cultivar as diferenças

Só Pedro Ferreira sabe porque começou a fazer dupla com Judite Mota. Estávamos no final da década de 1980 e os dois trabalhavam há dois anos na agência de publicidade Ogilvy & Mather. Ele como diretor de arte, ela como copywriter. A história não é tabu, mas também não é para ser contada aqui. “Está lá para trás, não interessa”, desvaloriza o publicitário, que atualmente é diretor criativo da VMLY&R.

A união durou pouco tempo, mas sobreviveu à ida de Pedro Ferreira para a Holanda, durante um ano, e às constantes trocas de profissionais do mercado publicitário português. Até que, quando foi convidado para a direção criativa da Nova Publicidade, uma das principais agências portuguesas da década de 1990, Pedro levou Judite com ele.

Numa primeira fase, trabalharam em tripla, com o diretor de arte Eduardo Martins. Foram premiados no Festival de Publicidade de Cannes, o principal avaliador da criatividade do setor no mundo, e formaram uma equipa criativa que hoje dá cartas noutras agências e áreas ligadas à criatividade. Em 1998, Judite é convidada para liderar a criatividade da agência Bates e trocam-se os papéis: leva Pedro com ela. Era o início, agora a sério, de uma dupla que marcou os anos de ouro da indústria publicitária portuguesa.

“Costumo dizer, na brincadeira, que já fiz mais de 500 packshots. Mas às vezes as campanhas têm múltiplos packshots, por isso acho que não fiz 500 campanhas”, afirma Pedro Ferreira: “Só 500?”, pergunta Judite Mota: “Eu acho que já fizemos muito mais campanhas.”

Algumas tornaram-se tão icónicas que não desapareceram da memória coletiva, como é o caso do lançamento do leite de pastagem Terra Nostra, cujo jingle Vacas Felizes ainda é entoado nas creches da ilha de São Miguel. “Foram nove meses de trabalho”, esclarece Pedro Ferreira.

``Às vezes é o silêncio que fala``

Entrevista com Judite Mota e Pedro Ferreira

Em 2016, quando Judite Mota ganhou mais responsabilidades na VMLY&R, a dupla deixou de trabalhar na mesma sala. “Era um bocado como os pais com os filhos, não havia opiniões contradizentes. Se estávamos em desacordo havia sempre um que cedia ao outro. Bastava um olhar ou alguém começar a falar… parecia telepatia”, explica Judite Mota. “Essa é a essência do trabalho em dupla: conhecer tão bem as forças e fraquezas do outro. E eu e o Pedro somos as pessoas mais diferentes uma da outra. E complementamo-nos bem.”

“Às vezes é o silêncio que fala”, completa Pedro Ferreira. “E nós poupávamos imenso tempo por nos conhecermos tão bem. As pessoas diziam que éramos muito rápidos e isso acontecia porque nos conhecíamos há muito tempo e evitávamos os terrenos mais pantanosos que existem no processo criativo.”

“Nós éramos quase só um”, completa Judite Mota. “Uma frente que ninguém quebrava. Na altura, saí da sala pelo simbolismo. Foi difícil, porque não estava habituada a estar sozinha. Foi estranho, mas depois habituamo-nos”, justifica Judite. “Mas eu aparecia lá ao final do dia para picar o ponto”, esclarece Pedro Ferreira.

Judite Mota admite que “são as diferenças, não as semelhanças” que fazem a força da dupla. Mas não só. Quando as luzes do escritório se apagam, Judite e Pedro transformam a colaboração criativa em amizade. Estão juntos regularmente, em almoços ou jantares, e Pedro é, inclusive, padrinho do filho mais velho de Judite. É assim desde o final da década de 1980 e assim será, previsivelmente, até que a única constante da vida, a mudança, faça o seu trabalho.

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada

Escrever 122 livros? Que bela Aventura

“Tirem as fotos que quiserem, temos só que tirar os casacos e as máscaras.” A cumplicidade entre Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada durante a visita à Regaleira, em Sintra, via-se até do alto do Castelo dos Mouros. A quinta sintrense foi o cenário para a sessão fotográfica das autoras portuguesas para a Revista Montepio digital. Foi unir o melhor de dois mundos: afinal, o próximo livro da coleção Uma Aventura vai desvendar os mistérios desta quinta verdejante, bem perto do centro da vila que é Património Mundial da UNESCO.

A ligação de Ana Maria Magalhães, 75 anos, e Isabel Alçada, 71, começou em 1976, no primeiro dia de aulas na Escola Preparatória Fernando Pessoa, em Lisboa. As professoras estagiárias de Português e História de Portugal encontraram-se à porta do estabelecimento de ensino e foi amor à primeira vista. De tal modo que, antes de a coleção Uma Aventura se ter tornado uma referência literária para milhares de jovens, já havia romances de Anel Alçães, pseudónimo utilizado pelas autoras nas histórias criadas, em exclusivo, para os seus alunos.

“Uma vez um aluno perguntou se o autor era um senhor brasileiro”, relembra Isabel Alçada. “Nunca revelámos que os textos eram escritos por nós. Mas eles gostavam, porque pediam mais histórias com as mesmas personagens.”

O fenómeno do enigmático Anel Alçães chegou aos colegas professores. “Éramos estagiárias e havia professores muito competentes e com muita experiência que pediam as nossas histórias para darem aos seus alunos. Isso dava-nos entusiasmo e coragem para prosseguir”, explica Isabel Alçada.

``Ainda escrevemos à mão``

Entrevista com Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada

Quando o livro Uma Aventura na Cidade chegou às livrarias, em 1982, as autoras já tinham uma longa experiência de escrita a quatro mãos e um convívio de seis anos como professoras, interagindo diariamente com os alunos e percebendo quais os seus gostos e interesses de leitura.

As sessões de escrita acontecem alternadamente, em casa de uma e outra, e os métodos são bem claros. “Geralmente quem escreve sou eu, porque tenho uma letra mais legível”, graceja Ana Maria Magalhães. E nem a evolução tecnológica alterou este hábito. “Ainda escrevemos à mão”, garante Isabel Alçada.

A caminho de quarenta e seis anos de parceria a quatro mãos, as autoras não têm planos para reduzir o ritmo de escrita. Ao todo, são já 122 livros publicados pelas duas, distribuídos por várias coleções. Uma média simples de três por ano desde 1982. E um número redondo que faria as delícias de qualquer autor: 8 milhões de exemplares vendidos.

Em 2022, quando o primeiro livro completa quarenta anos, a dupla continua a ganhar novos leitores. A jovem Eduarda, de 11 anos (na foto), começou há semanas a ler Uma Aventura na Cidade. Esperam-na mais de 60 livros e 12 500 páginas para devorar.

Maria João e Mário Laginha

Uma dupla que nunca jaz(z)

“Há quanto tempo não ensaiamos? Um ano e meio. Mas parece um milhão de anos.” Sentada numa cadeira ao lado do piano de Mário Laginha, Maria João ajeita-se para o primeiro ensaio de preparação para o concerto incluído no 1.º Festival de Verão de Campos de Jordão, em São Paulo, no Brasil.

Ao longo dos quarenta e cinco minutos em que a Revista Montepio assistiu ao ensaio de uma das duplas mais importantes das últimas quatro décadas de música portuguesa, e uma das mais internacionais, a música jorrou sem intermitências. Como se, no dia anterior, Maria João e Mário Laginha tivessem terminado uma das várias digressões que realizaram nos anos anteriores.

Apesar de terem seguido caminhos distantes, o conhecimento mútuo não desapareceu. Os acordes do piano de Laginha dançam com as notas que saem dos pulmões de Maria João. “Achei que ia ficar com o Mário para sempre”, lamenta, meio a sério meio a brincar, a cantora. “E quando a separação aconteceu, mais da parte dele do que da minha, foi um baque, uma angústia. A minha vontade era estar com o Mário até morrer. Mas depois as coisas acabaram por ficar bem, porque se continuasse naquele lugar estaria a repetir-me. Foi muito bom ir visitar outros lugares.”

A dupla conhece-se há quarenta anos e foi profícua. É autora de perto de 100 músicas originais e acumulou 13 álbuns. O número deu azar aos fãs da dupla. “Um álbum novo?”, questiona-se Mário Laginha. “É uma coisa que nunca é impossível, mas tenho a profunda sensação de que tem que ser algo especial. E ser lançado quando as pessoas não estão à espera.”

``Há quanto tempo não ensaiamos? Parece um milhão de anos``

Entrevista com Maria João e Mário Laginha

“Portanto, daqui a vinte anos, quando já formos muito velhinhos, trocamos os temas rápidos por outros mais lentos. Então vai ser mesmo surpreendente, porque não vamos conseguir tocar aquilo”, responde, a rir, Maria João.

Quem gostaria de ouvir um novo álbum da dupla tem razões para acalentar a esperança. Afinal de contas, o encontro entre os dois foi improvável e motivado apenas por uma mudança drástica de carreira de Maria João:

“Lembro-me de ter tirado o curso de nadadora-salvadora com duas amigas, e uma delas, a Cândida, era cantora de ópera. Estávamos no balneário da piscina do Inatel, em Oeiras, e ela cantava. Eu, que sabia uma música ou outra pela metade, resolvi fazer o mesmo e percebi que cantava mais alto que ela. Berrava mais que ela. Foi incrível, uma sensação de descoberta. Não tinha mesmo consciência. E depois tive muita sorte”, explica Maria João.

Quando a piscina em que trabalhava entrou para obras e a cantora ficou temporariamente sem emprego, decidiu tentar a sorte no Hot Clube Portugal. Seria, de qualquer forma, uma questão de tempo até que o talento se revelasse. “Acho que a Maria João só poderia ser cantora, aquilo estava-lhe completamente nas entranhas. Se não fosse num momento, era noutro. Ela cantava em casa e tinha aquela força. Tenho a certeza que ela ia ser cantora”, explica Mário Laginha. O destino encarregar-se-ia do resto: “Aqui entre nós, acho difícil que não nos encontrássemos.”

Rodrigo Santos e Linux

O dono hiperativo e o cão-guia pachorrento

Nasceu em 1978 com um glaucoma congénito e aos 7 anos ficou totalmente cego. “Quase todo o meu percurso de crescimento foi feito quase como cego total”, explica o presidente da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO). Foi profissional de rádio durante onze anos, licenciou-se em Direito e foi trabalhar para a Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito do Serviço Nacional de Proteção Civil. Hoje é chefe da divisão de apoio a bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Os cargos que ocupa em instituições europeias e mundiais obrigam-no a viajar com frequência. Nada que o assuste. “O meu primeiro cão-guia, o Nobel, um labrador amarelo, foi dos poucos que visitou um país como o Gana. Também andámos pela Europa: Grécia, Suíça, Itália, República Checa, Alemanha, Dinamarca, Inglaterra, França, Espanha, Bélgica e Luxemburgo. Já bastante velhote, ainda foi de férias comigo ao Brasil”, explica Rodrigo Santos.

Durante os dez anos que o acompanhou, Nobel passou por todas as curvas e contracurvas da vida de Rodrigo: as mudanças de emprego, o divórcio, a procura de uma nova casa e o começo de um novo relacionamento. “Ao longo destes dez anos de permanente turbulência na minha vida, o único que esteve comigo, constantemente, foi ele”, continua. “Sempre foi um resistente. E muitos que nos conheceram diziam ser muito raro existir uma dupla com a nossa cumplicidade.”

``O cão-guia tem de poder brincar como cão, no espaço dele``

Entrevista com Rodrigo Santos e Linux

Hoje, Rodrigo faz dupla com Linux, um labrador preto. “São cães completamente diferentes. O Linux é maior e mais meigo que o Nobel. Tecnicamente, é um cão muito hábil e tranquilo, mas faz tudo no tempo dele. Se eu precisasse de acelerar com o Nobel, não havia problema nenhum. O Linux vai ao ritmo dele”, refere o presidente da ACAPO.

Além de fazer dupla com Rodrigo, Linux vive com a cadela-guia Scout. “Eu e a minha namorada estávamos com dúvidas de como eles se dariam. Apresentámo-los numa zona neutra, como mandam as boas regras de convivência canina, e viemos para casa. As três horas seguintes foram de brincadeira”, conta Rodrigo. “Eles precisam disto. E ainda hoje brincam muito um com o outro e gostam de ser felizes.”

Rui Silva e Pedro Fragoso

Os Lennon/McCartney do podcast português

Nem a distância de 300 quilómetros que os separa, nem o facto de apenas se terem encontrado fisicamente três vezes, impediu Rui Silva e Pedro Fragoso de serem os mais prolíficos podcasters de Portugal. Ao todo, são mais de 500 episódios gravados entre Oeiras e Vila Nova de Gaia, com as câmaras desligadas, a falar de desporto, através da marca Hemisfério Desportivo. “Quando liguei o Zoom e vi o Rui até foi algo estranho para mim”, resume Pedro Fragoso, de 33 anos. [NDR: todas as entrevistas foram gravadas através da plataforma de videoconferências Zoom].

São oito os podcasts que Rui e Pedro publicam quase todos os dias – alguns a meias com outras duplas: Matraquilhos, Última Chicane, Desconto de Tempo, Tocha Olímpica, 24 Segundos, Atlas de Bolso, Anatomia da Bola e Pioneiro. Este último venceu o prémio de melhor podcast na área das Questões Sociais, na edição de 2021 do festival PODES, do jornal Público. “Foi um dos últimos podcasts do Hemisfério Desportivo. O Rui desafiou-me a criá-lo e eu disse que sim porque sabia que ia resultar. E foi incrível, é um dos que mais gostamos de gravar”, explica Pedro Fragoso.

“É uma sorte encontrar alguém que não vire a cara a uma ideia nova”, garante Rui Silva, de 37 anos. “Quando pensei no Pioneiro pela primeira vez, pareceu-me que havia espaço para um podcast abordar figuras do desporto que derrubaram barreiras sociais e abriram caminho para quem vem a seguir.” O ex-jornalista, a gozar de um ano sabático, admite que o podcast “viria a dar bastante trabalho” aos dois. Mas lá no fundo sabia que Pedro não recusaria. É que, nesta dupla, não há discussões nem desacordos. Cedências, talvez, mas daquelas sem importância.

``É uma sorte encontrar alguém que não vire a cara a uma ideia nova``

Entrevista com Rui Silva e Pedro Fragoso

Além da geografia, a química entre os dois ultrapassa a questão financeira: apesar de o Hemisfério Desportivo ter conta no site de financiamento coletivo Patreon, o valor mensal recebido dos patronos ronda os 100 dólares, ou cerca de 90 euros. “Não dá para um salário ao final do ano”, graceja Rui Silva.

Não é o dinheiro, nem a fama, nem o salto para um projeto maior, talvez noutras plataformas, que os faz passar horas e horas a estudar os temas que vão completar os episódios que chegam a ultrapassar uma hora de emissão. O que os faz correr é o gosto de investigar, de saber mais e o prazer de construir uma espécie de estação de rádio amador que está vinte e quatro horas por dia à espera dos seus ouvintes. E eles, entre os quais o escritor destas linhas, continuam a regressar, todos os dias, para ouvir as vozes que se habituaram a ouvir – seja a concordar ou discordar.

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