medida que a pandemia da Covid-19 foi criando novos desafios à saúde mental da população portuguesa, abriu-se uma nova fase no combate a este flagelo silencioso. Saiba como mover-se no labirinto da saúde mental e por que razão falarmos dos nossos sentimentos é o primeiro passo para alcançarmos uma melhor qualidade de vida.
Aquela terça-feira foi muito stressante. Quando Cláudia Antunes perguntou por que razão o colega com quem tinha trabalhado de forma muito próxima faltou, disseram-lhe que estava com COVID-19. “Fui esconder-me na casa de banho a chorar.” Com uma função de chefia numa cadeia da grande distribuição, este tem sido o seu escape, sobretudo desde o início da pandemia. “Ao sábado ou domingo, dias de maior movimento, nem consigo pensar, tal a quantidade de pessoas que estão lá dentro [da loja] e que não cumprem o distanciamento social. Fico com dores de cabeça”, conta.
A licenciada em gestão, de 44 anos, já sofria de ansiedade. “Qualquer assunto mais importante ou urgente causa-me mais stress do que é suposto. Sinto dores no peito, dores de cabeça.” Mas tudo piorou desde o primeiro caso confirmado de COVID-19 em Portugal, em março de 2020, e agudizou-se até com as notícias de que a Ómicron é mais contagiosa do que as estirpes anteriores. “Tenho um medo irracional de apanhar COVID, ainda que racionalmente saiba que pode acontecer”, diz.
“A pandemia afetou-nos a todos de algum modo? Não tenho a menor dúvida”, confirma Tiago Pereira, coordenador do gabinete de crise para a COVID-19 da Ordem dos Psicólogos. “E há alguns sinais além da depressão e da ansiedade. Há mais irascibilidade e as pessoas têm mais dificuldade em controlar o comportamento, em ter prazer em situações rotineiras.”
Aconteceu com Cláudia Antunes. “Deixei de conseguir ler, e gosto muito. Tenho dificuldade em concentrar-me. E desenvolvi um hábito terrível, a obsessão pelo telemóvel. Passo demasiado tempo nas redes sociais. Acho que é da minha solidão”, lamenta. Cláudia deixou de fazer jantares com os amigos – a primeira vez que voltou a ter um convívio destes foi já em novembro do ano passado, mas essa nem sequer é a norma: “A parte social é que está a custar-me. Tenho colegas de trabalho que vão almoçar todos juntos, eu sou incapaz. Na cantina do trabalho, vou sozinha”, descreve.
Fugir da ansiedade, um dia de cada vez
“A pandemia retirou-nos o espaço social. É importante que as pessoas contrariem isso e intensifiquem os contactos sociais, convivam com outras, conversem, percebam como os outros estão a sentir-se. ‘Se calhar não sou apenas eu que estou a sentir-me assim.’ Ajuda-nos a filtrar melhor as situações difíceis e que são do contexto do nosso dia a dia, e quando é um problema”, refere Tiago Pereira. No caso de Cláudia Antunes, trata-se de um problema que um psicólogo a tem ajudado a ultrapassar. Quanto ao uso excessivo do telemóvel, por exemplo, o especialista deu-lhe como “trabalho de casa” reduzir o tempo que passa nas redes sociais.
Apesar de ter deixado de frequentar o ginásio, onde ia “cinco a seis vezes por semana”, Cláudia Antunes continua a ter no exercício o seu escape. Encontrou um grupo de mães com quem faz jogging e inscreve-se em caminhadas na montanha. “Gosto do exercício físico em si, que é uma terapia genial para a ansiedade. Tenho gastrite, contração nos músculos e ombros – são sintomas físicos da ansiedade –, e fazer desporto sempre foi uma maneira de relaxar.”
O psicólogo Tiago Pereira aplaude, porque fazer exercício físico ou conseguir dormir tem grande impacto na nossa saúde mental. O psiquiatra Júlio Pêgo, do Hospital da Cruz Vermelha, sublinha até que “o sono é o guardião da saúde mental”.
“Uma pessoa que dorme bem, à partida vai ter sempre melhor saúde mental do que aquela que não dorme, porque não reativa os circuitos que o cérebro precisa.” Nos últimos dois anos, com a pandemia, o psiquiatra recebeu “repetidamente” pacientes num estado de exaustão. “Tinham depressão por não dormirem bem, não era por desgosto”, sublinha.
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O psicólogo Tiago Pereira sublinha que o ser humano tem uma capacidade de adaptação forte mas que não é ilimitada. “As pessoas que estão a sofrer não são mais fracas do que as que não sofrem. Estão mais sobrecarregadas.”
Dora é fotógrafa de eventos e, com a pandemia, têm sido cancelados. “Sempre que os pedidos de trabalho começam a recuperar, há outra vaga e vamos todos para casa”, lamenta. E o divórcio, que foi recente, também deixou marcas. “Tenho a sensação de que estou sempre a recomeçar e parece que não avanço. Acabamos por nos sentir impotentes”, afirma a fotógrafa de 42 anos, que deixou o acompanhamento psicológico devido a dificuldades financeiras mas agora sentiu necessidade de retomar.
Em janeiro de 2021, o Instituto Ricardo Jorge divulgou um estudo segundo o qual mais de um terço dos inquiridos (34%) apresentavam sinais de sofrimento psicológico. Havia 27% de pessoas que diziam ter sintomas moderados a grandes de ansiedade, 26% de depressão e 26% de perturbação de stress pós-traumático. “Começaram a aparecer nas consultas pessoas que nunca tinham ido ao psiquiatra, que tinham uma saúde mental razoável mas começaram a dormir pouco, a acordar cedo. Ao fim de algum tempo, a privação de sono dá ansiedade e depois depressão”, refere Júlio Pêgo. O psiquiatra explica que quem sofre mais de ansiedade são os adultos, porque o futuro é incerto e estão sem bússola. “Não sabem como isto vai acabar.”
Foi precisamente isto que mais afetou Salvador Cunha, de 32 anos. O primeiro confinamento, em março de 2020, foi o mais difícil para o então consultor de comunicação, que se descreve como alguém que “olha para as coisas com um sentido negativo”. O casamento, marcado para 25 de abril, foi adiado. E começou a sentir o peso da incerteza, “de não saber se teria os meios para uma vida confortável”. “Eu não sabia se iria ter emprego daí a dois meses”, refere.
Nunca teve um ataque de ansiedade. “Era mais cansaço, sentia muita irritação, tinha estados mais depressivos e alturas de não sair da cama”, recorda. “Com a pandemia”, diz, “parece que não há uma luz ao fundo do túnel. Senti-o nos piores momentos de ansiedade e que iria ter de viver assim o resto da vida. E isso não é verdade. Hoje estou num lugar bom”.
O imprevisto, sempre o imprevisto
O psicólogo Tiago Pereira explica que “sempre vivemos com imprevisibilidade, mas com alguma segurança e controlo”. Com a pandemia tudo foi posto em causa. “Foi um grande abalo”, confessa Salvador Cunha, que faz psicoterapia de um modo intermitente desde os 14 anos. “Tenho a noção de que sou um privilegiado porque posso pagar e recorrer a uma psicoterapeuta que adoro.” Uma das ferramentas que tem usado para ultrapassar a ansiedade é fazer uso da criatividade – que pode ser uma ajuda muito grande, afirma o psiquiatra Júlio Pêgo – através da marcenaria e da cerâmica.
“Uma vez ouvi alguém dizer que era mais terapêutico do que psicoterapia. É darmos uso às mãos como se tivéssemos a desatar nós dentro da cabeça”, descreve Salvador Cunha. Também se alimenta melhor e diminuiu o consumo de álcool. Com efeito, além do sono referido acima, a alimentação é de facto importante, como refere a psicóloga Joana Pinheiro, do Hospital da Cruz Vermelha: “O sono e a alimentação são os nossos melhores reguladores do humor. Não há comprimidos que os substituam. E se estiverem regularizados, tudo o resto é mais fácil.”
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Crianças e jovens: riscos para o futuro
“A minha grande preocupação de que haja sequelas ao nível da saúde mental é com as crianças, os adolescentes e os jovens”, confessa o psiquiatra Júlio Pêgo. “Ficaram sem o laboratório, que é a escola. Se não vão, não irão aprender os laços de grupo. E não têm o convívio com os colegas para desenvolverem a linguagem, o pensamento, a solidariedade.” Para o psiquiatra do Hospital da Cruz Vermelha, as crianças “vão ter défices de emoções e futuramente irão precisar muito de apoio psiquiátrico e psicológico”.
A psicóloga Joana Pinheiro confirma: “Passámos a ter muitas crianças em consulta” porque os pais viam nos filhos “mais nervosismo, dificuldade de concentração, alguns níveis de irritabilidade, dificuldade em adormecer ou acordar, pesadelos, choro, birra”. Mas, adianta a profissional do Hospital da Cruz Vermelha, também há situações peculiares, que são o isolamento e a tristeza. “Muitas crianças diziam-me claramente que estavam tristes.”
Segundo um levantamento da UNICEF, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância, no primeiro ano e meio de pandemia um em cada sete jovens entre os 10 e os 19 anos foi afetado diretamente pelos confinamentos.
Logo no primeiro confinamento, ainda em 2020, Cláudia Antunes apercebeu-se de algumas dificuldades na filha e acabou por levá-la a uma psicóloga. Como os pais nunca deixaram de trabalhar, a menina, então com 7 anos, ficou a cargo da tia. A mãe ensinou-a a usar o e-mail para enviar as fichas e relatórios pedidos pelos professores e a usar a plataforma Zoom para assistir às aulas online. Mesmo assim, faltou a algumas, porque a tia (que estava em teletrabalho e com os filhos também em casa) nem sempre conseguiu ajudá-la a tempo.
Um dia, a menina estava com a televisão acesa e viu uma animação sobre medidas de proteção contra a pandemia, como lavar as mãos. “Já não aguento mais, estou farta de COVID!”, desabafou.
“Estava extremamente incomodada por não ter o pai e a mãe a ajudá-la. Começou a querer dormir na cama comigo, o que nunca aconteceu desde bebé”, relata Cláudia Antunes. “A psicóloga conseguiu ajudá-la a transmitir por palavras o que sentia.” Quando via a mãe mais nervosa, ou ela lhe ralhava sem razão aparente, fazia perguntas (“Porque estás zangada?”, por exemplo). A mãe apercebeu-se de que era mais um exercício passado pela psicóloga.
Além das crianças, na prática clínica de Joana Pinheiro apareceram também jovens com patologias de ansiedade muito relacionadas com a questão da interação social. “Têm dificuldade em gerir o que são contactos de confiança e a vontade de estar com os outros.”
Aprender a lidar com a ansiedade
O início do confinamento até lhe pareceu “umas férias”, descreve Maria João Carvalho. “Como estava em casa, que é o meu sítio seguro, sentia-me bem.” Mas quando tinha de ir a sítios com muita gente, sentia que tinha desaprendido a estar socialmente. “Como se o meu corpo se tivesse desabituado.” Foi então que o transtorno generalizado de ansiedade, que Maria João Carvalho tem diagnosticado há muitos anos, regressou e até se agudizou. “A psicóloga disse-me que a minha ansiedade ficou fóbica”, conta a estudante de Ciências da Comunicação, de 20 anos.
Um dia, na viagem de comboio para a universidade, o coração começou a bater acelerado, “como se o corpo estivesse pronto para fugir”. Sentiu tonturas, fraqueza nas pernas e suor. “Tive que sair numa paragem aleatória e fiquei a chorar.” Depois disso, diz, ficou “com trauma” porque sabia que não podia tirar a máscara e sentia-se a sufocar. “Estive uma semana sem conseguir ir às aulas com medo de que a história se repetisse.”
Procurou a ajuda de uma psicoterapeuta porque “precisava de ferramentas”. Leu muito sobre a sua perturbação e aproveitou o verão passado para treinar e encontrar estratégias: “Se estiver no comboio e sentir suores frios, tiro o casaco. Se for preciso, tiro a máscara para beber um golinho de água. Foco-me na respiração, meto um podcast e aceito que estou ali.” O maior medo de Maria João era estar sozinha – tanto que, durante algum tempo, só andava de comboio com os amigos – e ninguém a acudir. “Sofria muito com medo de não ter amparo. Aceitei a ansiedade, criei uma relação com ela”, descreve agora.
Maria João Carvalho aprendeu aquilo que Joana Pinheiro descreve como “primeiros socorros psicológicos”, que “toda a gente deveria saber desde o primeiro ano na escola”. O que acontece quando a ansiedade escala é psicossomático e, portanto, “tem que se conseguir distrair o cérebro”.
“Costumo dizer aos doentes para pensarem no que vão fazer no dia seguinte para o jantar ou que pensem num número grande e aleatório e comecem a contar em ordem decrescente. Isto rouba espaço à atenção que estão a dar à sintomatologia”, explica. Antes, Maria João era capaz de tentar fugir da ansiedade indo lavar a loiça. “Mas estas atividades não ativam o cérebro porque são automáticas”, afirma Joana Pinheiro. Agora, a estudante universitária “aceita a ansiedade” e assim lida melhor com ela.
Também tem outras ferramentas igualmente úteis, como fazer ioga (o que lhe tem permitido aprender a controlar a respiração) e escrever, o que para o psiquiatra Júlio Pêgo é ótimo: “Expressar as emoções através da escrita é uma terapia. Na adolescência, temos um diário que é como um amigo. Não podemos revelar ao pai ou à mãe, é um superego, uma censura social. Isso fortalece a saúde mental.”
Geração Z preocupa os profissionais de saúde
Rúben Silva, de 22 anos, estava a meio do curso de Geografia quando a pandemia chegou a Portugal. O seu plano era, assim que terminasse a licenciatura, juntar-se à namorada, que é de Marrocos e trabalha na China. Ao contrário do previsto, com as restrições nas viagens, as imposições nos vistos e as dificuldades financeiras, estão há dois anos sem se verem.
Viver esta relação à distância nos últimos dois anos foi o mais difícil de gerir. Tanto para Rúben como para a namorada, que estava em Portugal em janeiro de 2020 quando a China se fechou ao exterior devido à pandemia e acabou por ter de regressar durante alguns meses a Marrocos, de onde é originária. A incerteza quanto ao futuro e a incapacidade de conseguirem estar juntos levou a momentos depressivos que tiveram de gerir apenas através das chamadas por Skype. “É muito mais complicado ajudá-la, não estou pessoalmente perto dela. A presença era algo que poderia ajudar-nos. E vê-la assim é devastador, também passei por momentos complicados”, resume.
Não procurou ajuda de um profissional porque “a mentalidade do meio” onde cresceu e a falta de condições financeiras limitaram-no. Neste ponto, Tiago Pereira, da Ordem dos Psicólogos, alerta para os riscos de apenas existirem 250 psicólogos nos centros de saúde em Portugal. “É menos do que o número de concelhos. E era disto que precisávamos quando há uma situação de desemprego ou a perda de uma pessoa relevante para não entrarmos num círculo.”
Em certos momentos, Rúben Silva entrou nesse círculo. Identifica sintomas que associa a uma depressão não diagnosticada: “Fadiga constante, irritabilidade durante dias ou mesmo semanas.” Não tem vontade de se levantar: “Há muitos meses em que normalmente acordo e passo meia hora a uma hora na cama. É falta de motivação.”
Rúben e Maria João estão num dos grupos que mais têm preocupado os investigadores. Sobre esta geração entre os 15 e os 24 anos, a geração Z, um inquérito internacional organizado pela UNICEF concluiu que uma em cada cinco pessoas diz sentir-se frequentemente deprimida ou com pouco interesse em fazer as coisas. Os resultados preliminares de outro estudo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra (o SMS, Sucesso, Mente e Saúde) também revelaram um aumento de emoções negativas, como tristeza, medo, raiva, ansiedade e menos felicidade.
“O futuro da mente depois da pandemia vai ter sequelas que não são apenas físicas”, conclui o psiquiatra Júlio Pêgo. Segundo os especialistas ouvidos pela Revista Montepio digital, o ideal é que se procure ajuda, conversando com quem está próximo ou com um profissional. E o mais cedo possível.
É preciso ler os sinais e agir, aconselha Tiago Pereira. “Se a situação parecer que está a piorar, se não sentir o prazer que antes sentia (em ir ao cinema, encontrar-me com um amigo), se tiver o sono comprometido, se achar que estou a descontrolar a minha alimentação (a comer demasiado ou perdi o apetite) e se isso alterar as minhas rotinas e começar a ter pouco controlo na situação, significa que os alarmes estão a soar e devo procurar ajuda – seja de uma pessoa amiga ou de um profissional. Há respostas que, se forem contingentes ao problema, são muito eficazes. Muitas vezes, basta um empurrãozinho.”
Como as empresas apoiam os funcionários?
Salvador Cunha trabalha numa multinacional que disponibiliza um psicólogo a todos os funcionários e facilita a conjugação entre a vida pessoal e profissional. “Tenho mesmo muita sorte”, diz. Mas existem outras recomendações da Direção-Geral da Saúde para promover a saúde mental dos trabalhadores, desde o prolongamento da hora de almoço à atividade física regular. Além de assegurar atividades ao ar livre (como surf e soft trekking), a Teleperformance, por exemplo, disponibiliza apoio psicológico e alimentação saudável diariamente (fruta, sopa de legumes e salada).