Devemos tomar decisões pelos nossos pais?

Devemos tomar decisões pelos nossos pais?
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Fotografia de Bruno Barata e Ilustração de Tiago Galo
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envelhecimento dos pais ou de outros familiares chegados é uma fonte de desafios para os seus cuidadores. Sendo um fenómeno cada vez mais frequente, obriga os filhos a tomarem decisões pela saúde e bem-estar de terceiros. Devem ficar nas suas casas ou passar a viver numa residência sénior? Conseguem ser responsáveis pelas suas finanças ou precisam de alguém que os ajude? Estes dilemas têm respostas difíceis e podem originar choques e tensões no dia a dia. Afinal, qual é o melhor modo de cuidar daqueles que amamos, sem criar conflitos?

Uma banal ida ao supermercado mudou a vida de Rogélia Barreto: “A minha mãe vivia muito perto de um centro comercial. Decidiu ir às compras, como fazia tantas vezes, e foi levantar dinheiro. A máquina engoliu-lhe o cartão porque ela insistiu em usar o número de telefone em vez do código do cartão multibanco.” Lucinda, a mãe, tinha sido diagnosticada há pouco tempo com uma doença oncológica, a que se juntaram alguns sinais de demência. Devido aos tratamentos agressivos, já tinha uma cuidadora em casa para a apoiar, mas aquele episódio fez com que Rogélia percebesse que mais coisas teriam de mudar.

“Não foi a primeira vez que uma situação como esta sucedeu. Os objetos em casa começaram a desaparecer ou a ficar desarrumados. O canalizador era chamado com frequência porque a minha mãe despejava muita coisa pela sanita. Até peças de roupa.” Aos poucos, Lucinda, cuja alcunha era A Marechala, aceitou ceder o controlo da sua vida. “Eu vivia a pouco mais de um quilómetro da sua casa. O meu irmão vivia na China, pelo que foi fácil decidir quem haveria de arcar com a responsabilidade”, explica. “Decidimos montar um sistema de suporte em casa, em vez de pô-la num lar. Durante dois anos e meio não tive vida pessoal.”

A história de Rogélia e Lucinda é comum a milhares de famílias portuguesas e sê-lo-á cada vez com maior frequência, devido ao envelhecimento da população. É um dos lugares-comuns do ciclo da vida: a partir de uma certa altura, os pais precisam de apoio permanente. E uma das maiores decisões a tomar é se o idoso deve permanecer na sua casa, com as devidas alterações arquitetónicas, hábitos e rotinas, ou passar a viver numa residência para seniores. “Nunca é uma decisão fácil, até porque na nossa sociedade a família é muito importante e os filhos querem ter os pais sob a sua responsabilidade”, considera Medina do Rosário, médico e coordenador da Unidade de Saúde Familiar de Villa Longa, situada às portas de Lisboa.

Um país a envelhecer

Segundo o portal de estatísticas Pordata, nunca existiram tantos idosos em Portugal, nem a esperança média de vida foi tão elevada.

População portuguesa com mais de 65 anos
1980: 11,4%
2000: 16,4%
2020: 23,4%

Esperança média de vida em Portugal
1980: 71,1 anos
2000: 76,4 anos
2020: 80,7 anos

Duas gerações com o mesmo problema

A população portuguesa está cada vez mais envelhecida e vivemos durante mais tempo. Mas o coordenador da USF de Villa Longa chama a atenção para a mudança de paradigma que se adivinha: “Os atuais idosos tiveram os filhos cedo, com 20 anos. Assim, temos pessoas com 90 anos a serem tratadas por filhos com 70. Têm disponibilidade porque estão reformadas, mas têm menor capacidade física”, explica Medina do Rosário.

Segundo o médico, é possível dizer, com alguma certeza, que este modelo irá alterar-se no futuro. “Estamos a ter o primeiro filho cada vez mais tarde. Quando os pais tiverem 80 anos, os filhos terão 55. Vão dispor de maior capacidade para tratar deles, mas menos disponibilidade de tempo.” Os números corroboram esta visão. Segundo o portal de estatísticas Pordata, em 1980 a idade média da mãe ao nascimento do primeiro filho era de 23 anos. Em 2020, a idade deu um salto de quase uma década, para os 31 anos.

Quem cuida de quem?

À medida que envelhecemos, vamos perdendo competências. É a lei da vida. A capacidade de aprender coisas novas diminui, o vocabulário e a memória começam a escassear, a força e o equilíbrio tendem a diminuir devido à redução muscular e à degradação óssea, sobretudo da coluna vertebral. Estes problemas afetam as pessoas de um modo diferente, muitas vezes em conjunto com outros problemas de saúde e hábitos de vida.

A mãe de Ana Veran Oliveira é completamente autónoma. “Não consigo encará-la como idosa. Tem 72 anos, mas continua muito ativa. Frequentou a universidade sénior, pratica ginástica, faz palavras cruzadas e sudoku. Vê filmes e documentários. E lê muito”, afirma a técnica de Recursos Humanos e Associada Montepio. Ainda assim, a morte do marido de Antonieta Oliveira, há treze anos, provocou algumas mudanças na vida da família. “Mudou-se para mais perto de nossa casa. Tem mais companhia e passámos a ter um grande apoio, sobretudo com os horários dos miúdos que, por vezes, não são fáceis de conciliar com a vida profissional.”

Antes da pandemia provocada pela COVID-19, Antonieta fazia voluntariado num centro de dia da Santa Casa da Misericórdia e apercebeu-se da importância destes espaços para tantas pessoas. Por causa disso, a família já falou sobre a eventual necessidade de apoio externo. “É um processo que encaramos com naturalidade. Claro que, se for necessário tomar decisões mais radicais, vai ser duro. Mas percebemos que pode bastar recorrer a um centro de dia ou a um apoio domiciliário. Em alternativa, podemos precisar de apoio mais especializado, em casa ou num lar. Em família, dizemos a brincar que os pais têm de tratar bem os filhos, porque são eles quem escolhem o seu lar.”

Ana Veran Oliveira fala todos os dias com a sua mãe, Antonieta, e vive perto dela. A família já falou sobre o tema tabu: necessidade de apoio externo

Os papéis que se invertem

Temos muita dificuldade em aceitar a mudança de papéis. Faz parte da natureza humana. Se é evidente que uma criança de 10 anos não pode viver sozinha, resistimos à ideia de que alguém com 80 anos precise da mesma atenção. “Uma das coisas que mais custou à minha mãe foi a não renovação da carta de condução. Chegou a pedir ajuda aos médicos para que lhe escrevessem uma autorização. Pediu à médica de família, na consulta de Neurologia, na Hemato-oncologia. A resposta, felizmente, foi sempre a mesma: ‘Andou tantos anos a servir de motorista para a sua filha, mas agora está na hora de ela lhe pagar por esse serviço’”, conta Rogélia Barreto. Os números parecem apoiar a decisão dos clínicos. Em cinco anos registaram-se mais de 5 000 casos de veículos em contramão nas estradas portuguesas, muitos deles envolvendo idosos. Ao todo, 25 pessoas perderam a vida.

Se na renovação da carta de condução mandam os médicos, há outras decisões em que os filhos têm de intervir e, por vezes, tomar decisões pelos pais. O plano de vacinação contra a COVID-19 é um dos exemplos mais recentes. O método de agendamento, através de SMS e com recurso a meios digitais, fez com que, em muitos casos, fossem os seus cuidadores a tomarem conta das marcações. Além disso, o transporte para os centros de vacinação ficou nas mãos dos filhos. A quantidade de vacinas ministradas ao domicílio foi reduzida, sobretudo nas primeiras tomas. “Não precisamos de nos imiscuir em muita coisa, mas acaba por haver decisões em que ajudamos. Na escolha da operadora de televisão, por exemplo. A minha mãe não tem paciência para aturar as chamadas intermináveis e comparar as ofertas. Confia no nosso conselho”, explica Ana Veran.

Há um caminho a percorrer, na sociedade, para criar condições para que uma vida longa também signifique uma vida com qualidade. A configuração das cidades tem de ser repensada. Muitas vezes, o percurso entre a casa e o café ou o supermercado tem de ser feito em dois troços por um idoso. Se houver um banco onde uma pessoa possa sentar-se e descansar, o caminho será menos penoso e a vontade de sair de casa também será maior.

Do mesmo modo, a existência de sombras e abrigos é importante, sobretudo numa altura em que, como consequência das alterações climáticas, se verifica um aumento da ocorrência de fenómenos extremos, como os dias de muito calor e chuvas incessantes. E se um idoso viver num segundo andar sem elevador, sair de casa torna-se ainda mais penoso. Se não vencermos estes desafios, acabamos por condenar as pessoas mais idosas a viverem prisioneiras nas suas próprias casas.

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As doenças que mais incapacitam os idosos

A lista é longa, mas doenças como o Alzheimer, diabetes ou cataratas são incapacitantes a nível físico ou mental. Se uma doença cardiovascular pode representar um risco de vida, a depressão não o faz de uma forma direta, mas implica uma redução brutal na qualidade de vida. E há estudos que indicam que caminhamos para um cocktail de doenças. O aumento da esperança de vida, aliado aos atuais maus hábitos alimentares e à quase ausência de prática desportiva, conduzirão a que, nos próximos vinte anos, o número de idosos com quatro ou mais doenças incapacitantes duplique.

Fontes de conflitos

Com mais ou menos dificuldades, a maioria dos idosos mantém-se em casa até ao final da vida. A partir de uma certa idade, porém, o dia a dia começa a complicar-se. Há memórias que escapam, capacidades que se perdem. O tacho que fica ao lume mais tempo do que devia. Dores que impedem de aceder a uma banheira. Olhos que já não conseguem ajudar a marcar um número de telefone.

“O apoio domiciliário foi uma solução que usámos para a minha avó e mostrou-se muito útil e prática. Assim como manter as idas ao centro de dia”, explica Ana Veran. As refeições, a lida da casa, a companhia em determinados momentos do dia, estava garantida. Seja como for, a rotina tem-se tornado a ferramenta fundamental para saber se está tudo bem com a sua mãe. Ela liga-lhe todas as manhãs, à mesma hora. “Caso não o faça, sou eu a telefonar para ter a certeza de que está tudo bem. Geralmente foi às compras ou ao cabeleireiro. Ficou entretida e esqueceu-se das horas. Também tem o cuidado de avisar quando vai para mais longe. São pequenas coisas que garantem a confiança de ambas as partes.”

Em muitos casos, isso não chega. Rogélia Barreto passou por momentos complicados com a mãe. “Chegou uma altura em que o real e o que se passava na cabeça da minha mãe se misturavam. Ela deixou de reconhecer as pessoas. Certa vez, a minha cunhada visitou-a e levou o cachorrinho. Ela confundiu-o com a bisneta. Para ela, eram ambas fontes de amor e membros da família. Então, não as conseguia distinguir. A bisneta chamava-se Luísa e ela insistia em chamá-la Maria Arroz. Como viviam na China, aquela associação fazia sentido na sua cabeça. No final da sua vida, deixou de reconhecer o meu irmão. Aliás, na verdade, ela esqueceu-se de que tinha um filho”, confessa Rogélia Barreto.

O aparecimento de quadros demenciais, ainda que ligeiros, é normal com a idade. Aliados à frustração do envelhecimento e à perda da autoridade que a posição na família significava, podem desencadear muitos conflitos. “Basta não saberem onde deixaram o dinheiro para assumirem que foram roubados pelo filho ou um cuidador”, assume o médico Medina do Rosário.

O papel dos cuidadores

Poucas pessoas estão preparadas para serem cuidadoras. Em muitos casos, é uma condição que tem de ser assumida de um momento para o outro: uma pessoa acamada precisa de fraldas, de uma cama articulada, de alimentação específica. São muitas coisas que um filho que seja cuidador tem de aprender a fazer de um dia para o outro. “Rapidamente entra em burnout porque é um trabalho esgotante. Deixa a sua vida para trás, por vezes até abandona a família e há uma pressão psicológica muito grande. É comum estar constantemente a ouvir: ‘Sou um fardo, não estou aqui a fazer nada’», refere o médico coordenador da USF Villa Longa.

O clínico aconselha que se peça auxílio e formação ao médico de família ou aos assistentes sociais, que “conhecem os apoios que têm à sua disposição na comunidade”. “Há IPSS com um serviço de apoio diário. É difícil pedir a quem tenha 70 anos que seja capaz de fazer a higiene diária dos pais. Não tem força para isso. Há equipas que o fazem, limpam a casa, preparam a comida. Se o idoso for incontinente, por exemplo, o Estado comparticipa na compra das fraldas. Há cuidadores que não sabem que têm esse direito e até há médicos que também não o sabem”, refere Medina do Rosário.

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Sozinhos na multidão

Lucinda, a mãe de Rogélia, tinha duas cuidadoras em casa. “Uma durante o dia, de quem gostava muito, e outra para a noite, com quem tinha uma convivência difícil. Por isso, eu ia lá para casa ao fim da tarde, na mudança de turno, e ficava até a minha mãe se ir deitar. Passei a ver novelas para lhe fazer companhia. E ao fim de semana, e em agosto, durante as férias das cuidadoras, assumia essa posição durante as vinte e quatro horas do dia. Foi muito duro: limpava a casa, trabalhava, fazia comida, cuidava da minha mãe, ia às consultas e aos tratamentos, fazia-lhe companhia. Praticamente sem ver mais ninguém a não ser o pessoal médico”, relembra Rogélia Barreto.

A fatura chega das mais variadas formas. Uma delas é financeira. Os últimos dois anos e meio da vida de Lucinda tiveram um custo que ascendeu a várias dezenas de milhar de euros: foi preciso adaptar a casa, encontrar uma cama e uma cadeira de rodas adequadas, e pagar às cuidadoras, por exemplo.

“Um idoso pode estar numa casa cheia de gente e sentir-se sozinho. Não participa nas tomadas de decisão, fala muito pouco com as outras pessoas. O trabalho e o cuidar dos outros membros da família faz com que se tenha pouco tempo disponível para dar atenção ao idoso. Com a idade, a sua visão deteriora-se e deixa de ver televisão. Ouve pior e deixa de ouvir rádio. Dorme pouco, ou seja, passa mais tempo acordado, mas sozinho. Tudo isto isola-o. E há alguma revolta porque os amigos e a mulher ou o marido desapareceram”, explica o médico. A integração num lar, ou a frequência de um centro de dia, acabam por combater estes sentimentos. Estimulam a interação com os pares, com quem partilham interesses e referências. São pessoas do seu tempo e não de um tempo que não reconhecem.

Se é certo que os filhos serão chamados, com maior frequência, a apoiar os pais, também é verdade que não há receitas universais ou milagrosas. Cada caso será diferente dos demais. “Acredito que nenhum filho coloca um pai numa instituição de ânimo leve. Vai procurar sempre o seu bem-estar e segurança. O problema é que, para os pais, pode parecer o descartar de um entrave. No entanto, se esta situação for previamente discutida, no momento em que surgir essa necessidade tomamos uma decisão de consciência tranquila, sabendo que estamos a zelar pelo melhor para os nossos pais”, explica Ana Veran.

O diálogo acaba por ser o importante neste processo. Rogélia Barreto recorda os momentos finais da sua mãe: “Tivemos uma conversa. Disse-lhe que podia ir descansada, podia ir ter com o marido e a irmã. Eu mandava-lhes um beijinho, mas não tinha pressa em ir ter com eles. Não sei se ela compreendeu a conversa, mas deu um grande suspiro, começou a respirar mais facilmente e foi-se em alguns minutos. Estar ali, de mão dada com ela, deu-me uma sensação de paz. Sei que fiz tudo ao meu alcance para que tivesse o melhor fim de vida possível, ainda que com um desgaste físico e psicológico brutal. Por causa desta experiência, já disse à minha filha: põe os olhos no que eu passei. Não te metas nisto. Põe-me num lar. Mas com duas condições: precisa de ter um cabeleireiro e vista para o mar.”

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