O teletrabalho pode salvar o mundo?

O teletrabalho pode salvar o mundo?
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s raposas, chacais e veados que invadiram as cidades durante os confinamentos foram como sinais de esperança sobre a vida natural. Os níveis de poluição baixaram e sonhámos com um mundo mais verde. Mas com o regresso aos escritórios voltaram as buzinas e tubos de escape. Perdemos o comboio ou o teletrabalho ainda pode fazer algo pelo planeta?

Um automóvel a gasolina pode emitir entre 180 e 700 gramas de dióxido de carbono (CO2) por cada quilómetro que percorre. É muito ou pouco? O suficiente para causar impacto no planeta. Os transportes são responsáveis por cerca de 25% das emissões de CO2 na União Europeia, sendo 72% da sua proveniência os transportes rodoviários. Os dados confirmam o instinto. Durante o início da pandemia da COVID-19, as ruas desertas e o medo de voltar a elas resultaram em cidades mais respiráveis: as emissões de dióxido de carbono caíram 17% entre 2019 e 2020.

Em agosto de 2021, a revista Nature publicou um artigo com as lições que deveríamos retirar da COVID-19 no que toca à “redução da poluição do ar urbano devido a limitações de mobilidade e ao teletrabalho”. Mas com o regresso à vida normal, as mensagens deixadas pela pandemia parecem estar à deriva em garrafas no oceano. Em cidades como o Porto ou Lisboa, a densidade do tráfego automóvel voltou aos níveis pré-pandemia e, nos céus, a circulação aérea disparou assim que a oportunidade surgiu.

Mesmo com a adoção do teletrabalho (em regime total ou parcial) por parte de algumas empresas e trabalhadores, o ar que se respira nas cidades não parece diferente do que inspirávamos em fevereiro de 2020. A pergunta que podemos fazer é: poderíamos – e não quisemos – ter salvo o mundo com o teletrabalho?

“O teletrabalho será a grande oportunidade para a aposta nos modos de deslocação suaves”

Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade

Estudos: precisam-se

Pedro Nunes, analista em Energia e Clima da associação ambiental Zero, acredita que nem todas as lições trazidas pela pandemia se perderam. “Há uma enorme quantidade de empresas que passou a dar a possibilidade de estar parte do tempo em teletrabalho”, afirma. No entanto, o significado real desta transformação não é esmagador. “A verdade é que 60 a 70% dos trabalhadores não têm [pelas funções que desempenham] sequer a possibilidade de fazer o seu trabalho de forma remota. E dos trabalhadores que podem fazê-lo, que serão perto de 30%, apenas uma pequena parte adotou o teletrabalho. Aquela ideia, durante a pandemia, de grande parte da população estar em teletrabalho não se concretizou. Muitas das grandes empresas tecnológicas internacionais já vieram, inclusive, dizer que tal não é possível”, explica o ambientalista.

Qual é o saldo? O que ganhou o ambiente com a adoção, ainda que não tão expressiva, do teletrabalho em regime híbrido, o modelo mais comum em vigor? “É provável que tenhamos conseguido reduzir a poluição atmosférica, mas ainda não existem muitos dados estatísticos sobre isso. Poderia avançar-se para medidas políticas de incentivo ao teletrabalho, por exemplo, mas para gerir e administrar primeiro é preciso medir”, refere Pedro Nunes. “Aguardamos os estudos para podermos perceber melhor esse impacto.”

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Mais aviões, menos videoconferências

Em Portugal, o tráfego de veículos ligeiros de passageiros é responsável por cerca de 15% das emissões totais de CO2. Em Lisboa, a maior cidade do país, entram diariamente 370 mil automóveis, sendo que este é o meio de eleição dos trabalhadores: em toda a área metropolitana, 60% da população desloca-se de carro.

Saindo do perímetro nacional e olhando para os céus, o cenário não é mais animador. A profecia de que as videoconferências iriam substituir as reuniões internacionais de âmbito profissional parece não estar a concretizar-se. Uma avaliação com a participação da Associação Zero mostra como o regresso ao passado poluente foi a opção de muitas empresas no que toca às deslocações por via aérea. “Cerca de 20% das viagens de avião são empresariais e o avião tem um impacto tremendo no ambiente [a aviação civil é responsável por mais de 2% das emissões globais de gases de efeito de estufa]. Das 230 empresas que integraram o estudo, 193 tiveram uma classificação medíocre neste tema. Continuam a viajar irresponsavelmente, sem necessidade. E estamos a falar de organizações que fazem publicidade das suas boas práticas ambientais”, lamenta Pedro Nunes. Paralelamente, com o teletrabalho aumentou a promoção do nomadismo digital, e viajar 10 mil quilómetros rumo a um “escritório tropical” tornou-se mais comum.

Teletrabalho parcial, consumos duplicados

Trabalhar alguns dias em casa e outros no escritório passou a ser um dos modelos mais populares entre as empresas de serviços a operar em Portugal. Este teletrabalho flexível trouxe enormes vantagens, como um maior equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional, mas gerou cenários mais complexos relativamente aos consumos energéticos. “Durante a pandemia, os escritórios estavam fechados e o consumo residencial subiu. Agora, mantemos um consumo residencial elevado e os escritórios também estão a funcionar”, salienta Pedro Nunes, da Associação Zero.

Ao mesmo tempo, alguns estudos demonstram que, com a adoção do teletrabalho, o desaparecimento do trajeto entre o domicílio e o emprego fez com que se gerassem novas (e eventualmente mais) deslocações no dia a dia, para levar os filhos à escola ou ir ao supermercado, por exemplo. Por último, os hábitos de consumo também mudaram, com as compras online a aumentarem significativamente. “Encomendar uma refeição online é um comportamento que tem uma pegada carbónica importante”, alerta o ambientalista.

Investigadores do Institut de Ciència i Tecnologia Ambientals, de Barcelona, concluíram, no entanto, que trabalhar em casa quatro dias por semana reduziria em cerca de 10% a quantidade de dióxido de azoto, o principal poluente provocado pela circulação rodoviária motorizada. Outro dado indesmentível é que uma videochamada emite apenas 0,6% das emissões de carbono produzidas num trajeto típico entre a casa e o escritório. “Ainda estamos a perceber para onde vamos”, conclui Pedro Nunes.

“Num questionário realizado aos cerca de 2 000 colaboradores de uma grande empresa, “93% demonstraram o desejo de não voltar ao modelo anterior à pandemia”

Beatriz Ortega, responsável pela área de Employee Experience de uma grande empresa da área dos seguros

O mundo já esteve “mais perto da natureza”

Filipe Duarte Santos, geofísico e investigador na área das alterações climáticas, recua a 2020 para recordar realidades fundamentais: “A COVID-19 trouxe uma diminuição muito grande da mobilidade e a atividade económica entre países desacelerou”, explica o responsável. “Sentiu-se que estávamos mais perto da natureza e que a natureza, inclusive, invadia a cidade. Houve quem vaticinasse uma oportunidade para as questões do ambiente. Mas o facto é que isso não ocorreu, pelo menos à escala que imaginávamos.”

Para agravar a situação, a guerra na Ucrânia “não faz antever o melhor acerca da proteção do ambiente”, diz o professor catedrático da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. “Tenho receio de que a descarbonização da economia e a conservação da natureza sejam colocadas em segundo plano”, lamenta.

Neste cenário, o impacto do teletrabalho pode ser a melhor notícia, em vários anos, para o ambiente. “O teletrabalho contribui para melhorar a qualidade de vida e para diminuir a poluição nas cidades. A redução do tráfego em cidades americanas, europeias e em locais como Nova Deli, Beijing, Jacarta ou Xangai seria fundamental para proteger o Planeta”, considera o professor.

O sul da Ásia é, neste momento, a região mais poluída do mundo, com consequências preocupantes para a saúde do planeta, mas também dos seus habitantes. Um relatório de junho de 2022 publicado pela Universidade de Chicago revelou que, além de ter um enorme impacto no ambiente, a qualidade do ar pode reduzir em mais de dois anos a esperança média de vida da população mundial. É, portanto, mais prejudicial do que fumar, um vício que retira 1,9 anos à longevidade média.

“A presença de automóveis nas cidades será cada vez mais anacrónica e indesejável”, prevê Filipe Duarte Santos. No entanto, reduzir a sua presença no espaço público é algo que só pode acontecer se existirem “medidas de melhoria nos transportes públicos”, defende o professor. “A chave de tudo isto está na mobilidade”, corrobora Pedro Nunes.

“A presença de automóveis nas cidades será cada vez mais anacrónica e indesejável”

Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável

Não há esperança sem mobilidade suave

Se parte da solução para um mundo menos poluído está na mobilidade, o teletrabalho é um dos grandes aliados desta estratégia. “O teletrabalho será a grande oportunidade para a aposta nos modos de deslocação suaves, que exigem um grande investimento de imediato”, sugere Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade. Porquê? “Reforça as deslocações de proximidade ao encontro do comércio tradicional, dos jardins e dos lugares de encontro de vivência urbana. E estas deslocações curtas, de cerca de quinze a trinta minutos, serão efetuadas a pé e de bicicleta.”

Se todos os que podem fazer teletrabalho seguissem este caminho, as cidades seriam as primeiras a mudar. “As cadeias de deslocação podem atenuar, esbatendo as tradicionais curvas da hora de ponta da mobilidade urbana e transformando-as em cadeias mais heterogéneas ao longo do dia”, explica a também consultora de mobilidade para diversas autarquias. A flexibilidade, quanto ao espaço mas também ao tempo, teria a capacidade de fazer desaparecer as enormes filas de trânsito na Ponte 25 de Abril, em Lisboa, ou na Via de Cintura Interna, no Porto, bem como aliviar os níveis de stress associados.

“Ainda acredito que os políticos, os técnicos e os cidadãos vão perceber que o planeta está doente e que, caso não façam uma mudança cultural na mobilidade urbana com muita urgência, teremos um grave problema nos próximos anos, que porá em causa a vida das futuras gerações”, preconiza Paula Teles.

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Teletrabalho e qualidade de vida

Ao mesmo tempo que colocou questões ambientais em cima da mesa, a adoção do teletrabalho gerou uma transformação na vida de muitas pessoas. Entre abril e junho de 2020, a venda de computadores portáteis em todo o mundo subiu 11% e a venda de secretárias aumentou 438%, segundo um estudo da Universidade de Manchester. O trabalho perdeu fronteiras físicas, alterou padrões comportamentais, formas de produzir em equipa e, inclusive, as legislações de diversos países, Portugal incluído.

Por um lado, uma panorâmica sobre o mundo dos serviços mostra trabalhadores socialmente isolados, muitos deles aproveitando a atividade remota para trabalhar em excesso, e crescem as preocupações com a saúde mental e física dos trabalhadores. Por outro, aumentam os testemunhos sobre um maior equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal, bem como uma maior facilidade em seguir uma alimentação saudável ou em praticar exercício físico.

Para Antonio Manrique Mata, trabalhador administrativo da Universidade Autónoma de Barcelona, uma das cidades que mais tem investido em políticas de mudança para uma mobilidade suave, o teletrabalho permitiu eliminar 132 quilómetros semanais em deslocações. “Vivo a 33 quilómetros da universidade, para onde ia todos os dias, de segunda a sexta, antes da pandemia. Agora, vou apenas três vezes por semana. Gasto menos no transporte, ganhei flexibilidade horária e concilio melhor a vida laboral e a familiar”, afirma o funcionário público.

Quem vê como impensável um regresso ao escritório é Carla Quelhas, agente de atores e celebridades na agência Elite Lisbon. Com dois filhos, a profissional pragmatiza a mudança da seguinte forma: “O teletrabalho possibilitou dar resposta ao trabalho que surgiu no pós-confinamento e, no meio disso, fazer uma máquina de roupa, tornando o meu final do dia mais leve.”

Carla já se deslocava a pé para o trabalho antes da pandemia. O carro continua a servir apenas para levar os filhos à escola, todas as manhãs. “Mas economizei tempo”, diz, referindo-se à vida pessoal e à profissional. “Antes chegava às 10 horas ao escritório e ainda tomava café com os colegas. Neste momento, às 9h30 já estou a trabalhar. E sou mais eficaz em casa, longe dos telefones dos outros colegas.”

“Gasto menos no transporte, ganhei flexibilidade horária e concilio melhor a vida laboral e a familiar”

António Mata, colaborador da Universidade Autónoma de Barcelona

Quem quer voltar ao escritório?

Em maio de 2021, 80,4% dos participantes num estudo do Observatório da Sociedade Portuguesa mostraram-se interessados ou muito interessados em continuar no regime de teletrabalho, e 77,9% admitiram que gostariam de trabalhar a partir de casa até quatro dias por semana. Em janeiro de 2021, mais de 65% das empresas (de diferentes países) inquiridas pela consultora Aon tinham a intenção de manter o teletrabalho em 2021. Na prática, a percentagem não terá sido tão elevada, mas foram várias as organizações que adotaram o teletrabalho.

Beatriz Ortega, responsável pela área de Employee Experience de uma grande empresa na área dos seguros, explica que, num questionário realizado aos cerca de 2 000 colaboradores, “93% demonstraram o desejo de não voltar ao modelo anterior à pandemia”. Hoje, podem optar pelo teletrabalho completo ou deslocarem-se ao escritório até duas vezes por semana. “Tivemos em conta a voz das pessoas”, afirma Beatriz Ortega. “Além disso, este modelo está alinhado com o objetivo de sermos uma empresa digital, para o qual investimos 100 milhões de euros na construção de um ecossistema na cloud, através do qual se gere todo o negócio.”

Numa microempresa, mudar do regime presencial para o teletrabalho pode ser simples, mas numa organização com 2 000 trabalhadores o esforço de adaptação é grande. Além da digitalização de várias ferramentas, o modelo também exige a transformação dos espaços físicos. Em várias empresas, além das tradicionais secretárias de trabalho, foram criados espaços de colaboração direcionados para brainstormings, workshops, formações e team buildings. Pensando nos home-offices, algumas empresas forneceram aos colaboradores o equipamento necessário para garantir que trabalham nas condições corretas.

Além de ter sido uma resposta à vontade dos colaboradores, a melhoria na gestão da sua vida pessoal resultou em “maiores níveis de eficiência e resultados positivos do ponto de vista operacional”, avalia Ortega. Como dizia Pedro Nunes, da Associação Zero, “ainda estamos a perceber para onde vamos”. E o planeta pede que se decidam bem os caminhos.

“O teletrabalho possibilitou dar resposta ao trabalho que surgiu no pós-confinamento e, no meio disso, fazer uma máquina de roupa”

Carla Quelhas , trabalhadora na agência Elite Lisbon

Na imagem de abertura deste artigo, Borge Trongmo trabalha a partir de um olival em Serpa. Conheça melhor a história de vida deste norueguês que se apaixonou por Portugal aqui

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