A educação está preparada – e a preparar – para o futuro?

A educação está preparada – e a preparar – para o futuro?
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Ilustração de Sérgio Veterano
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acesso à formação, o papel dos professores e a diversidade pedagógica são alguns eixos à volta dos quais gira o futuro da educação. Falámos com Carlos Neto, Elsa Cerqueira e Maria Manuel Vieira, especialistas em diferentes graus de ensino, para refletir sobre que cidadãos e trabalhadores está o ensino português a formar através de um sistema que pouco ou nada mudou nas últimas décadas.

“Se o mundo mudou, a escola tem de mudar.” É assim, perentório, que Carlos Neto, especialista na área educativa e lúdica e autor do livro Libertem as Crianças (Contraponto, 2020), começa a conversa com a Revista Montepio sobre o que podemos esperar da educação das crianças em Portugal. A escola irá mudar. Já está a mudar, aliás, ainda que mantenha as raízes num modelo tradicional, concebido no século XIX, como apontam vários especialistas.

Na década de 1970 já existiam sinais dessa transformação, como a criação da Escola da Ponte (Santo Tirso), integrada no Movimento da Escola Moderna, na qual a individualidade e a expressão são respeitadas, tornando-se protagonistas da aprendizagem. Seguiram-se outros exemplos e novos modelos pedagógicos, mas a transformação da escola, no seu sentido pleno, nunca se universalizou. Para Carlos Neto, há certos planos, como a liberdade para brincar e expressar o corpo, nos quais estamos, inclusive, a regredir. O que se passa, então, nos níveis pré-escolar, primário e básico? Que crianças está o país a criar?

“Há escolas que proíbem ações como subir a uma árvore ou fazer a roda. Isto gera um excesso de formatação do corpo e da mente”, defende Carlos Neto (foto DR)

A famosa frase de Carlos Neto que responde a esta questão é a seguinte: “Estamos a criar crianças totós.” “Existe um esquecimento progressivo da cultura lúdica humana, e ela é um direito”, diagnostica o professor jubilado, que fala num “analfabetismo motor” com consequências preocupantes para a saúde e o desenvolvimento intelectual. “Temos vindo a verificar um declínio dramático do tempo e do espaço para a atividade física e o brincar (…). Isto reflete-se inevitavelmente no desenvolvimento de competências motoras, cognitivas, emocionais e sociais nas crianças (…). Por outro lado, verifica-se um aumento significativo de desordens mentais, que incluem a ansiedade, a depressão, a hiperatividade e o défice de atenção e pensamentos de suicídio na transição da adolescência para a idade adulta, além da tendência crescente para o excesso de peso, a obesidade, a diabetes, doenças cardíacas e respiratórias”, escreve o autor no seu livro.

No fundo, a sua visão é que estamos a desrespeitar a máxima “mente sã em corpo são” ao manter as crianças sentadas durante um número elevado de horas, sem direito à liberdade de movimentos e à experimentação. “A escola está isolada, são prisões onde as crianças são depositadas e onde passam de trinta a cinquenta horas por semana.” A somar a isto, a ocupação metódica dos tempos fora da escola com atividades programadas (da ginástica ao ballet) estará a impor ao universo infantil uma lógica adulta que Carlos Neto considera altamente nociva. Como escreve Gonçalo M. Tavares no prefácio de Libertem as Crianças, só “a expressão ‘ocupação dos tempos livres’, neste particular, é não apenas paradoxal, mas quase demente”.

Por que razão isto está a acontecer? O pedagogo menciona um fator central: o fomento social de uma cultura do medo (medo de cair, do risco, de falhar). A este aspeto associa-se uma atitude demasiado protetora dos pais e das instituições de ensino. “Há escolas que proíbem ações como subir a uma árvore, fazer a roda ou o pino, mexer na terra ou em pauzinhos”. Para Carlos Neto, “tudo isto gera um excesso de formatação do corpo e, por consequência, da mente”. Não saber lidar com o risco de subir a uma árvore, em criança, pode significar não saber resolver problemas imprevistos numa empresa de software, em adulto. “Vivemos hoje numa cultura cartesiana em que o corpo fica à porta da escola. Quando, há quarenta anos, passávamos a maior parte do tempo na rua, aprendíamos normas, relações em grupo, contacto com a natureza, tinha-se outra noção do tempo, havia experiências imprevistas, tentativa e erro”, refere o especialista.

Ao mesmo tempo, “as crianças estão desiludidas com a escola, não têm interesse pelas matérias e os professores também estão insatisfeitos com a profissão, burocratização, salários e falta de valorização da carreira. Há um grau de infelicidade enorme”, agravado pela pandemia da Covid-19, segundo o autor. O período em que vivemos, no entanto, poderá ser um momento de viragem. “Estamos numa transição vertiginosa do ponto de vista digital, como nunca a humanidade assistiu. Temos uma crise climática, como nunca existiu, e uma degradação dos princípios fundamentais da vida humana no que respeita à ética.” E todas as crises reclamam mudança.

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Ainda assim, transformar o panorama educativo significa mover um gigante. “Há muitas variáveis e interesses em jogo, financeiros, económicos, mas também políticos.” Mexer no modelo escolar é mexer no mundo do trabalho e, por conseguinte, na economia. Carlos Neto explica: “Mais do que educar, há hoje uma grande preocupação em criar as condições para a sobrevivência de um sistema em que os pais trabalham de uma forma escravizada. As escolas são a solução para que as crianças estejam entretidas, ou seja, uma solução para o problema dos pais e do trabalho.”

O que fazer para mudar?

Em 2020, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) lançou quatro cenários possíveis para a educação do futuro, admitindo que o quadro atual está condenado à extinção. Assim, a primeira hipótese centra-se num sistema baseado no ensino doméstico; a segunda admite um modelo híbrido entre o ensino doméstico e a escola (presencial ou não); a terceira prevê a educação gerida pelo setor privado; e a quarta anuncia a digitalização completa da escola. O que acontecerá pertence ao desconhecido, mas todos os cenários são “muito complicados”, na opinião de Carlos Neto, que preserva, apesar de tudo, uma visão otimista: “Vai haver coisas novas e surpreendentes, não tenho dúvidas. E vai haver mudança. Já está a acontecer. Mas as coisas caminham devagar. Esta geração acomodada tem de ir para a reforma e a geração mais nova vai ter de reinventar a escola.”

Para o professor, a solução começa na conceção de um sistema que inclua as noções de diversidade, individualidade e ecologia. “Temos de trabalhar em rede, ter um novo contrato social para a educação, o que significa adotar uma educação democrática, cooperativa, participativa, com uma governança coletiva, em que se trabalha com a comunidade – crianças incluídas – e o poder local”, adaptando a mudança às idiossincrasias de cada realidade.

Conforme a conceção, o resultado deverá fundamentar-se no seguinte princípio: “Não se pode apenas pensar em alunos preparados para entrar na universidade, tem de se pensar em pessoas, e isso passa por promover a sua capacidade crítica.” Em segundo lugar, é necessário “desburocratizar a escola”, libertando os professores para a sua missão central e avançando para “uma educação mais naturalista, ecológica e humanista”. Por último, “a escola não pode continuar a ser só a sala de aula; aprende-se em todo o lado”.

Em paralelo à escola, Carlos Neto acredita, ainda, que é necessário alterar a legislação laboral. “É preciso permitir a jornada contínua, por exemplo, para que as crianças não continuem numa escola a tempo inteiro, como acontece hoje.” Utopia? “São mudanças que já aconteceram nos países nórdicos há mais de vinte anos”, adianta o investigador.

Ensino secundário: devolver a emoção aos alunos

“O desafio principal da escola não é, de certeza, o mercado de trabalho”, começa por afirmar Elsa Cerqueira, professora de Filosofia na Escola Secundária de Amarante e impulsionadora de inúmeros projetos que unem a Filosofia, disciplina que ensina aos alunos do 10.º e 11.º anos, ao cinema. “A missão da escola é humanizar [e levar] os alunos a aprender e desenvolver, de forma muito autónoma, determinadas competências que permitam lidar com o imprevisível.”

Apesar de não ter uma visão catastrófica da educação – “senão nunca poderia ser professora” –, Elsa Cerqueira diz que há sempre espaço para melhorar. “A educação é esperança em ação, porque é uma intervenção em cada um e na comunidade, uma relação de abertura entre escola e comunidade. O espaço do aprender não pode estar apenas dentro das quatro paredes da instituição. A escola não está fechada, não somos muros”, explica.

Deixar as quatro paredes da escola. Não há melhor definição para o que Elsa Cerqueira tem feito ao longo dos anos. Desde sempre ligada à Sétima Arte através dos cineclubes de Amarante e do Porto, a professora diz que, através dos filmes, cada um de nós vai descobrindo, por camadas, aquilo que sente e pensa. Neste caminho, formula novas questões. “Todas as temáticas e ações podem ter repercussões na própria comunidade: a questão da diferença, da solidão”, explica.

“O espaço do aprender não pode estar apenas dentro de quatro paredes. A escola não está fechada, não somos muros”, afirma Elsa Cerqueira (foto: Miguel Pereira)

Um projeto em constante crescimento

As análises aos filmes fizeram quase sempre parte das aulas da professora Elsa, mas o grande salto do projeto surgiu em 2010, quando aproveitou o lançamento da Organização Plena dos Tempos Escolares (OPT) na Escola Secundária de Amarante para criar o Clube Filo-Cinema. “O cinema é uma arte inclusiva, independentemente da faixa etária, estilo de ensino, alunos do ensino inclusivo ou profissional”, realçou à Revista Montepio. O objetivo do clube não passa apenas pela exibição dos filmes. “Há um trabalho a fazer: [descobrir] a narrativa, o tema, as personagens, as ações, a cor, o som ou os planos. Isso desperta questões que permitem desenvolver a capacidade crítica e criativa, de intervenção”, explica. Por outras palavras, pôr os alunos a pensar.

O passo seguinte foi convidar turmas do pré-escolar e do 1.º ciclo para assistirem aos filmes e pensarem e imaginarem a partir deles. “As crianças têm capacidade de pensar e são criativas. Têm uma potência filosófica e criadora absolutamente notáveis porque ainda não estão formatadas”, continua. O projeto – “Filosofia com Cinema para Crianças” – foi tão bem acolhido que Elsa Cerqueira começou a formar professores do pré-escolar e do 1.º ciclo de escolas de todo o país, deixando sementes cinematográficas em cidades como Lisboa, Braga, Maia, Seixal ou Almada.

Pelo meio, meteu-se uma pandemia que isolou alunos e professores, mas não os projetos idealizados pela professora, que desta vez também chegaram aos familiares dos alunos e aos lares de idosos. Através do site Polegarmente e de projetos como “CineQuarentena” ou “Filme, logo Existo”, Elsa Cerqueira aproveitou a relação próxima que tem com alguns realizadores portugueses para exibir filmes online gratuitamente.

“Começou por ser para os alunos, depois passou para os familiares e acabou por se alargar. Passei a receber análises críticas dos filmes, segundo os parâmetros que o clube de cinema orientava. Mas também outras coisas: há um texto feito por um aluno que estava tão bem elaborado, com recursos a experiências, a leituras de outros filmes, que acabou por ser publicado na revista Cinema, da Federação Portuguesa de Cineclubes”, avança a professora, que admite ter-se sentido “muito próxima dos alunos” com estas atividades.

Durante o confinamento surgiu ainda o projeto “Sentimentário”: livros feitos pelos alunos em casa. “Podiam fazer colagens, neologismos, aforismos. Queria que eles fossem colocando o que sentiam, o que descobriam em si, nos outros, no espaço onde habitam, fora dele. Deste modo, não se sentiam sozinhos. A certa altura, tinha 200 “sentimentários” e alguns eram livros maravilhosos de reflexão e descoberta: de si, dos outros, do mundo”, confessa.

Aprender é também sentir

Pelo empenho e capacidade de fazer projetos inovadores com os alunos, Elsa Cerqueira foi premiada com o galardão Global Teacher Prize Portugal, um “reconhecimento do trabalho excecional com os alunos e contributo extraordinário para a sua profissão”. A professora de Filosofia não tem uma varinha mágica para mudar a educação em Portugal, mas acredita que noutras escolas exista uma “reflexão e pensamento” que apoiem o aparecimento de projetos diferenciadores. Em conversa com a Revista Montepio, aliás, diz que conhece alguns projetos “profundamente encorajadores da mudança”. “Acredito que há muitos bons professores nas instituições de ensino. E se houver professores desencantados, a tarefa e desafio são muito maiores. Têm de se reencantar de alguma forma”, prossegue. “O desafio maior é continuarmos a encontrar oportunidades na adversidade.”

É impossível adivinhar a escola de amanhã. “Mas podemos prepará-la para a incerteza. Como? Ao desenvolver a literacia, interpretar, organizar, confrontar os argumentos, ter uma perspetiva crítica construtiva, um pensamento diferenciado e criativo, divergente”, explica. Mas também ao abranger uma dimensão interpessoal e de trabalho colaborativo, inclusive entre professores e alunos. “Vivemos num ensino profundamente disciplinado, ou seja, por disciplinas, e fragmentado. No fundo, a educação deveria ser mais integral: o saber e o conhecimento não são inseparáveis de como nos posicionamos e sentimos e de como se desenvolve essa afetividade.”

Ensino superior: como ultrapassar a era da técnica

Nunca o país teve tantos cidadãos a estudar em cursos superiores. A linha que mostra a evolução de matriculados neste patamar da educação, desde 1978, denuncia três picos claros: em 2003, havia 400 831 cidadãos matriculados; um novo pico formou-se em 2011, com 396 268 pessoas inscritas; a curva voltou a descer, até 2015, para atingir em 2022 o seu máximo: 433 217 matriculados. Para 2030, a União Europeia espera que 50% das pessoas até aos 34 anos tenham um diploma do ensino superior.

Desde 2015, o ensino superior tem assistido a um aumento consistente do número de matriculados (Fonte: Pordata)

O aumento “tem sido continuado, com algumas flutuações, de acordo com as crises económicas, como na altura da Troika”, refere Maria Manuel Vieira, coordenadora do Observatório Permanente da Juventude (OPJ), do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Por outras palavras, de cada vez que o poder de compra diminui, a acessibilidade ao ensino superior ressente-se. Assim, economia e educação mantêm uma relação estreita, sendo a dança mais recente musicada pelas dificuldades de acesso à habitação. Como explica a investigadora, “a partir do momento em que o ensino superior deixou de estar confinado a três cidades e passaram a existir instituições de ensino em todas as capitais de distrito, tem havido um recrutamento cada vez mais local. E os elevados custos da habitação atuais deverão ter impacto neste fenómeno”.

Se, por um lado, há uma descentralização positiva do ensino, por outro, a escolha dos candidatos pode ser mais influenciada pelos recursos financeiros disponíveis do que pelo curso ou instituição de ensino desejados. “A médio prazo, se não se encarar de frente o problema dos custos da habitação, com mais oferta de soluções para estudantes, poderá dar-se a gentrificação do próprio ensino superior, ou seja, os grandes centros passam a recrutar apenas os estudantes com elevados recursos económicos”, explica Maria Manuel Vieira.

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O impacto dos preços da habitação no gráfico com que começámos este artigo ainda é desconhecido. No entanto, existem outros problemas referentes ao ensino superior já identificados. O envelhecimento da camada docente e a falta de atratividade da profissão são dos maiores desafios atuais com elevado impacto no futuro, segundo Maria Manuel Vieira. Quem ensinará e estará motivado para ensinar os alunos de amanhã? É “uma questão premente”, com “efeitos na relação com os alunos”, bem como na qualidade (ou mesmo existência) da experiência de novos tipos de pedagogia.

O ensino superior, “o acesso à profissão de professor é muito limitado, pelo número reduzido de concursos que abrem para o acesso e para a progressão na carreira”. Por outro lado, uma vez na docência, as exigências imputadas aos professores aumentam, desde o número elevado de alunos por turma, passando pela “investigação científica com cada vez mais produtividade”, pelas candidaturas a projetos e pela componente de divulgação científica à comunidade.

Da perspetiva do aluno, o ensino superior continua a representar uma porta para o mercado de trabalho. No entanto, o que está do outro lado da porta mudou e vai mudar ainda mais nos próximos cinquenta anos. “Face ao que organizações como a OIT [Organização Internacional do Trabalho] e outras que se têm debruçado sobre o futuro do trabalho afirmam, haverá quatro dimensões-chave: a tecnologia, a globalização, a demografia e as alterações climáticas. Neste quadro, prevê-se que mais de metade dos empregos que existem hoje mude ou desapareça”, refere a coordenadora do OPJ.

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Personalizar para diferenciar

Assim, o ensino superior também tem de acompanhar esta transformação, o que não estará a acontecer de forma transversal. “Nem todos os cursos têm a dimensão da resolução de problemas”, do ensino do pensamento crítico, já que “estão centrados em pedagogias e saberes técnicos”, analisa a investigadora. “As licenciaturas, na minha perspetiva, têm de ser apostas de banda larga, mas também permitir escolher outras cadeiras, até noutras instituições de ensino. Não seria desinteressante, por exemplo, que um aluno de engenharia pudesse ter uma cadeira de um curso de filosofia. Mesmo para o mercado de trabalho isto pode ser diferenciador”, reflete a investigadora.

Face ao atual “panorama de incerteza”, Maria Manuel Vieira deixa um conselho aos jovens que hoje tentam decidir o seu percurso: focarem-se no que acreditam ser a sua vocação, “independentemente de considerações sobre o mercado de trabalho”. Ao gosto, talento ou “inclinação” podem acrescentar-se competências através da educação superior, mas também de experiências paralelas, que são, aliás, cada vez mais valorizadas. “Por força da minha profissão, analiso muitos currículos e vejo que, além dos cursos, as pessoas apresentam outras valências, como cursos breves, voluntariado, dimensões artísticas, ou seja, domínios que podem tornar o seu currículo mais único e diferenciá-lo”, explica a investigadora.

“Apesar de esta ser a geração mais escolarizada de sempre, os benefícios face às gerações dos pais não se concretizaram”, analisa Maria Manuel Vieira (foto DR)

“Tirar um curso? Para quê?”

A par do aumento da concorrência entre recém-licenciados, nem sempre o mercado de trabalho português está apto para absorver, com condições atrativas, os diplomados em Portugal. Não sendo um problema interno do ensino, a emigração qualificada (ou “fuga de cérebros”, como foi popularizada no período de intervenção da Troika) agride o investimento realizado nesta área da educação. “Há uma tese destacada que defende que as gerações recentes beneficiariam dos progressos alcançados pelas anteriores. Neste momento, essa tese tem conhecido críticas, dizendo que, pela primeira vez, hoje já não existe acesso a melhores ou às mesmas condições de qualidade de vida, estabilidade, remuneração. Questões como a diminuição do volume de emprego à escala global, a compressão do mercado de trabalho, relações contratuais mais frágeis e salários reduzidos afetam a autonomização dos jovens e a frustração instala-se nas novas gerações. Ou seja, apesar de esta ser a geração mais escolarizada de sempre, os benefícios face às gerações dos pais não se concretizaram”, descreve Maria Manuel Vieira.

Em agosto do ano passado, a partir do relatório “Empregabilidade dos Ciclos de Estudos do Ensino Superior”, o Tribunal de Contas alertou para a abertura de vagas em cursos associados a uma baixa empregabilidade (como Psicologia, Jornalismo ou Marketing), aconselhando à criação de um quadro regulatório que aumente a transparência de comunicação e a capacidade de decisão dos alunos quanto aos cursos a seguir.

Ajustar as vagas nos cursos superiores à realidade laboral é uma alteração a considerar. No entanto, esta perspetiva secundariza aspetos como a realização pessoal e a formação de cidadãos para uma sociedade melhor. Por outro lado, a coordenadora do OPJ acredita que o mercado de trabalho está a atravessar uma mudança que poderá ter impacto no recrutamento de recém-licenciados. Cerca de 99% das empresas são pequenas e médias e grande parte é gerida por pessoas com baixas qualificações, mas a tendência é para que este cenário se transforme nos próximos anos. “Às vezes, a integração de pessoas mais jovens e mais qualificadas [do que as próprias chefias] era difícil por questões de estatuto. Mas as gerações de gestores estão a renovar-se”, observa a investigadora.

Que cidadãos estamos a formar?

Embora a empregabilidade seja um aspeto central, o ensino superior não foi estruturado apenas para formar futuros trabalhadores. Em retrospetiva, Maria Manuel Vieira aponta para uma certeza: “Estamos a dar mais possibilidades a mais jovens de acederem ao estudo neste período da sua vida, até porque, no passado, entrava-se precocemente no mercado de trabalho.” Este tempo mais alargado de aprendizagem é, em princípio, potenciador de uma maior dedicação ao pensamento crítico.

No entanto, embora as etapas do ensino tenham alargado, o ritmo de aprendizagem acelerou com o processo de Bolonha, iniciado em 1999. “Não sei se há todas as condições para podermos chegar ao ideal de um ensino superior que seja um local de reflexão, de sentido crítico duradouro e efetivo. Tenho dúvidas, não respostas”, afirma a investigadora. “Uma das grandes vantagens do ensino, e do ensino superior em particular, é podermos parar para pensar e este é um exercício fundamental”, conclui.

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