sombra de eventos como a pandemia ou a guerra na Ucrânia, mas também dos avanços da inteligência artificial e da robótica, “instabilidade”, “incerteza” e “imprevisto” tornaram-se vírgulas na tentativa de formular ideias sobre o futuro. A falta de segurança pode dificultar os planos ou tornar-se mesmo num bloqueio. Mas o futuro, ao que sabemos, sempre foi desconhecido. Porquê, então, este medo do incerto em 2023? Falámos com o saxofonista Pedro Alves Sousa sobre a importância da improvisação na música e na vida.
Ao longo da conversa improvisada de Pedro Sousa com a Revista Montepio, a ideia de futuro surge em loop, de forma inevitável. Como se o futuro quisesse, constantemente, intrometer-se no presente. E quer. É a ideia de futuro, de um horizonte, que impulsiona a tomar decisões. E quanto mais imprevistos existirem, mais rápida tem de ser a capacidade de resposta. Tal como acontece na música. “Tocar força-me a tomar uma atitude ou decisão no momento. E permite, obviamente, uma grande liberdade, abre muitas portas possíveis em simultâneo”, explica o saxofonista com percurso na música improvisada e experimental.
Na criação de Pedro Sousa, nada é preto ou branco. Mesmo a sua música vive fora dos catálogos. O músico andou pela guitarra e pelo jazz, tocou recentemente com a banda de rock Mão Morta, ouve tanto William Basinski como DJ Screw, agradam-lhe a organicidade dos instrumentos mas também a música eletrónica e, como pano de fundo, gosta da ideia de um futuro familiar (o nome, aliás, que escolheu para a sua recém-criada editora), mas também de se encontrar com o desconhecido.
“Chegas aos anos 1990 e falam-te de como tudo vai ser incrível, de como nos anos 2000 tudo vai avançar. Mas quando chegamos ao novo século, há uma deceção. Estás a lidar com um futuro que parece cada vez mais acelerado, mas com muito rehash [repetição] das mesmas ideias”
Foi numa casa chamada Futuro que Pedro Sousa, de 36 anos, começou a ser músico. “Foi lá que cresci, onde vivi sozinho e aprendi a ser adulto, onde aprendi a tocar instrumentos – guitarra, eletrónicas, saxofone – e onde gravei o meu primeiro álbum [em 2008].” Foi lá que preparou o futuro, passando pelo jazz e pela improvisação. Em 2022, após praticamente metade da vida dedicada à música, decidiu lançar a editora Futuro Familiar. “Durante a pandemia já tinha a label em andamento. O nome tinha a ver com tudo aquilo com que ando obcecado, as ideias de loop, as espirais para fora”, explica Pedro Sousa, que acredita que estamos a viver um tempo de repetição, “a era da mimesis”. “Não há nada de realmente novo na música, há repescagens. [Há músicas que se ouvem hoje e que] se imagina que são coisas novas, mas elas já existiam. É uma espécie de fail better, um conceito a que a música improv [improvisada] está muito ligada. No fundo, são coisas diferentes, mas familiares.”
O que significará este regresso ao passado? Já inventámos tudo? Atravessamos uma crise de identidade? Há uma falta de rumo? Ou de espaço para experimentar? “Um dos grandes hits do ano passado foi o Running Up That Hill, da Kate Bush [uma música de 1985], que entrou na série Stranger Things. De repente, toda a gente estava a fazer remixes e covers daquilo. Em 2020, tinha acontecido o mesmo com os Fleetwood Mac, com Dreams [canção de 1977]”, exemplifica Pedro Sousa. Para o músico, a explicação poderá ser esta: ouvimos o mesmo, ligeiramente modificado, porque procuramos um lugar de conforto. Mas caímos num paradoxo: “Isto é tudo similar, mas, ao mesmo tempo, deveria ser mais caloroso.” “Foi esta a ideia que a Futuro Familiar foi buscar”, concretiza.
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Viver com a incerteza
A busca de uma verdade para consigo próprio tem sido o motor das explorações de Pedro Sousa por diferentes caminhos da música. “A música continua a manifestar as minhas paranóias, o medo do futuro, de envelhecer, das mudanças climatéricas… Avançamos para esse abismo, enquanto músicos, lidamos com isso em tempo real e manifestamo-nos de uma maneira que tenta ser verdadeira e honesta.” Nesse percurso, entrar na música improvisada foi “uma forma pragmática de forçar uma afirmação e imposição pessoal e de, com isso, vencer medos e indecisões”, explica. A improvisação permite deixar de lado percursos predefinidos, em detrimento de um constante questionamento interno. O objetivo é encontrar a tal verdade, uma direção. “No free jazz, por exemplo [movimento nascido nos anos de 1950 nos Estados Unidos, que quebrou convenções e explorou novas direções dentro do jazz], o que eles faziam era mandar sentimento, energia [para a música], berrar para o saxofone. Eles também estavam a ver no que aquilo ia dar. No fim do dia, a única maneira de fazer música improvisada é tocar”, define o saxofonista.
Para o free jazz, como para muitos outros géneros, a incerteza foi um instrumento de libertação, permitiu entrar em novos territórios, compreender novas dimensões. Muitos músicos na área da improvisação apontam para esta ausência de linhas definidas como uma possibilidade de afirmação, mas também de criação e evolução. “Não saber como um concerto ia correr era uma coisa que me angustiava muito no início, mas depois aprendemos a viver com isso”, explica Pedro Sousa. “Na realidade, até gosto disso, de me pôr no risco. Não sei se se fica viciado nessa pseudo-adrenalina”, confessa.
A geração do improviso
A geração de Pedro Sousa é a que melhor conhece palavras como “precariedade” ou “instabilidade”. É a que deixou de experienciar empregos de longa duração, a que passou por diversas crises económicas e a que enfrenta problemas graves no plano da habitação. Um grupo com dificuldades em planear ou, se lhe quisermos chamar, a geração do improviso. Mas talvez sem liberdade suficiente para explorar as suas próprias direções.
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Curiosamente, foi particularmente às gerações Y e Z que a canção Running Up that Hill mais tocou, segundo um artigo publicado em junho no jornal The Guardian. Os millenials e os zoomers não viveram a sua chegada aos tops nos anos de 1980, mas, em 2022, o encontro com este “novo familiar” terá reinstaurado a possibilidade do sonho.
Para Pedro Sousa, estes estados de incerteza e de desorientação associados à ideia de futuro estarão, também, relacionados com um sentimento de deceção geracional. “O século XX tem uma linha evolutiva impressionante. Chegas aos anos 1990 e falam-te de como tudo vai ser incrível, de como nos anos 2000 tudo vai avançar. Mas quando chegamos ao novo século, há uma deceção. Estás a lidar com um futuro que parece cada vez mais acelerado, mas com muito rehash [repetição] das mesmas ideias”, analisa o músico.
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Ao mesmo tempo, os fenómenos atuais parecem ter períodos de vida mais curtos. “Se calhar, em dois anos, o TikTok morre e surge outra coisa”, exemplifica Pedro Sousa. É o que acontece, por vezes, na música improvisada: “Estamos a trabalhar em ciclos muito curtos e a narrativa, o arco grande da música, pode ser afetada”, explica. Por esse motivo, arrisca dizer que esta década, que começou com uma pandemia e que enfrenta uma guerra que tarda em resolver-se, talvez seja “um novo loop que ainda não estamos a conseguir ver bem”. “As nossas incertezas têm a ver com isso. Perguntamo-nos onde estão os nossos pilares, as nossas garantias, o nosso conforto”, concretiza Pedro Sousa. Prometeram que o mundo seria um lugar diferente, mas ainda estamos à procura desse lugar.