Os novos empregos mudaram o modo como consumimos?

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s novas tendências de trabalho anteciparam a maior mudança na rotina dos portugueses em várias décadas. De que modo a flexibilidade laboral, o teletrabalho e a semana de quatro dias alteraram, também, a vida das empresas que dependem da nossa rotina para sobreviver?

Desde que Sara Alves passou a ter a possibilidade de estar em teletrabalho, ainda antes da pandemia, o seu quotidiano transformou-se. Passou a ir buscar os dois filhos à escola, tornou-se mais rápida na conclusão de algumas tarefas laborais e começou a aproveitar as pausas para adiantar os trabalhos domésticos ou passear o cão. Também deixou de perder tempo no trânsito e, como muitas vezes almoça em casa, poupa algum dinheiro por mês.

“Neste momento, não me vejo a voltar presencialmente ao escritório, todos os dias, das 9h às 18h. Prefiro manter este regime híbrido, que me permite um equilíbrio maior entre a vida profissional e pessoal”, conta Sara, que, aos 41 anos, integra a equipa de recursos humanos da Siemens.

“Por norma, vou à empresa quando tenho algum evento – é importante estar com os colegas e criar relação –, e deixo o trabalho que exige maior concentração para fazer em casa. Há semanas em que tenho de ir lá quase todos os dias, e há outras em que simplesmente não vou.” Como mora na Margem Sul e tem de atravessar uma das pontes sobre o rio Tejo para ir ao escritório, nos dias em que faz a viagem sai de casa muito cedo e regressa à hora de almoço, a tempo de fugir às filas, continuando depois a trabalhar.

“Com este regime flexível, assim como devido à crise habitacional, alguns colegas optaram por sair do centro de Lisboa para investir em casas maiores no interior do país”, adianta.

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Bom para todos? Depende

Não são necessários estudos aprofundados para perceber que há um antes e um depois da pandemia em muitas das rotinas dos portugueses. A maior flexibilidade de horários (por exemplo, o regime híbrido, que consiste numa semana de trabalho dividida entre o trabalho no escritório, em alguns dias, e em casa, nos restantes), mas também o teletrabalho total ou a semana de quatro dias têm transformado a vida das famílias e das empresas.

Na Siemens Portugal, que há muito põe nas mãos dos trabalhadores o regime de trabalho preferido, há “impactos positivos na performance, produtividade e bem-estar” dos colaboradores, considera Pedro Henriques, diretor da área de People and Organization. “Contribui para que consigamos reter e atrair o talento de que precisamos para desenvolver os nossos projetos.”

Estas alterações acabam por afetar, também, áreas como os transportes, a educação ou a restauração, ainda que com diferentes graus de visibilidade. Será, por exemplo, que os restaurantes e os cafés sentem falta das pessoas que passaram a almoçar ou a lanchar em casa? Segundo a AHRESP (Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal), o teletrabalho “provocou algumas mudanças nos hábitos e frequência de consumo nos estabelecimentos de restauração e similares”. Mas não há estatísticas sobre o impacto real destas mudanças.

Nas zonas onde há maior concentração de serviços, como é o caso da baixa de Lisboa, a redução do número de pessoas que para aí se desloca para trabalhar acaba por não ter um impacto visível, segundo a Associação de Dinamização da Baixa Pombalina. Vasco de Mello, vice-presidente da organização, explica que “esse efeito não se nota por causa do turismo, que representa entre 70% a 80% do negócio da zona”.

No caso do consumo do café em cápsulas, por norma, um produto que existe na maioria das casas dos portugueses, a tendência continua a ser de crescimento, segundo a Delta Q, marca parceira do Montepio Associação Mutualista. Ainda assim, a crise económica tem sido um fator preponderante neste segmento, considera a brand manager da empresa, Daniela Figueiredo. “Vemos os consumidores a comprarem soluções mais orientadas para o preço, o que nos levou a (…) novos formatos com maior número de cápsulas e com um valor mais competitivo ou a novas marcas”, refere.

“Prefiro manter um regime híbrido [de trabalho], que me permite um equilíbrio maior entre a vida profissional e pessoal”

Sara Alves, Siemens

Pais em casa, crianças fora

Se com a maior flexibilidade laboral há alguns pais que conseguem passar mais tempo com as crianças, ainda há “muitos” para quem isso não acontece. Segundo Mariana Carvalho, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), há uma tendência para os mais pequenos estarem mais tempo fora de casa. “Temos registado um aumento da procura de ATL e também de explicações, porque, no seguimento da pandemia, há crianças que precisam de recuperar conteúdos e matérias. Os alunos que estão hoje no 5º ano não têm autonomia de estudo”, afirma, acrescentando que também há quem trabalhe por turnos e precise do apoio destas estruturas.

“Por outro lado, com o aumento do custo de vida, há pais e mães que fazem horas extraordinárias ou arranjam trabalhos extra e não têm com quem deixar os filhos.”

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Maior organização no trabalho

Em alguns casos, as mudanças no mercado de trabalho materializaram-se na semana de quatro dias, como aconteceu com a Evolve, uma empresa de recrutamento e consultoria que, em junho, aderiu a um programa-piloto do governo nesta área. Os 40 colaboradores passaram, então, a trabalhar em média 36 horas semanais, em vez das habituais 40 horas, o que significa que cada semana de cinco dias é intercalada com uma de quatro.

Sandra Delgadinho, coordenadora na área de desenvolvimento organizacional e de gestão de equipas, conta que, desde que este modelo foi implementado, aproveita o dia livre para “despachar” tarefas familiares, como ir ao supermercado ou acompanhar os pais a uma consulta médica. “No futuro, pretendo também dedicar algum tempo à formação”, diz.

De acordo com um estudo da consultora Kantar, intitulado “Certeza no meio da incerteza” (2022), os portugueses estão a comprar mais produtos no supermercado e a gastar mais dinheiro do que era habitual. Citado pelo site Eco, o estudo mostra que a tendência para consumir em casa mantém-se elevada, mesmo após o fim da pandemia da Covid-19.

Apesar de ter uma carga laboral menor, o volume de tarefas que Sandra Delgadinho desempenha não se alterou. “Passámos a organizar-nos de maneira diferente”, explica, acrescentando que, entre outras mudanças, o tempo das reuniões na empresa foi reduzido para 45 minutos no máximo. Passou, também, a haver períodos de trabalho focado, em que ninguém pode ser interrompido.

Estando num regime 100% presencial, Sandra Delgadinho considera que a sua rotina se manteve semelhante quando comparada com a fase em que trabalhava 40 horas semanais. “Acordo às seis para fazer exercício físico, deixo os meus filhos na escola e estou no escritório às 8h30. Saio às 18h30 e dedico o resto do tempo à família.”

Tal como Sandra Delgadinho, há milhares de portugueses que continuam a deslocar-se diariamente de casa para o trabalho e vice-versa. Talvez isso explique, entre outros fatores, por que é que a utilização de transportes continua a aumentar. De acordo com o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), entre 2020 e 2022 houve um aumento de 6% na venda média mensal de passes não escolares – passou-se de uma média de 524 643 passes para 554 152.

Também a circulação automóvel disparou nos últimos tempos. No primeiro semestre de 2023, o consumo de gasolina e gasóleo foi o mais alto desde 2010. De acordo com o jornal Expresso, nos primeiros seis meses do ano verificou-se também um aumento de 11% do número médio de veículos na estrada, por comparação a 2019. Uma tendência que se tem verificado, também, no mercado do setor. Segundo a Associação Automóvel de Portugal (ACAP), em 2021 “saíram das fábricas instaladas [no país] 289 954 veículos, ou seja, mais 9,7% do que no ano anterior”. No ano seguinte, em 2022, a produção aumentou 11,2% face ao ano anterior, passando para 322 404 veículos. Um crescimento que a Benecar, parceira Montepio especializada na venda de veículos usados, diz ter verificado ainda no final de 2020, quando, após uma diminuição da procura devido à pandemia, no início do ano, ocorreu uma recuperação nas vendas.

Nunca foi fácil adivinhar o futuro, mas hoje é particularmente impossível fazê-lo. No yin e yang desta viagem, a única constante é a mudança. E se não formos nós a mudar por vontade própria, na vida como na economia, outros o farão.

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