Palavras Cruzadas: como a imigração está a mudar a língua portuguesa

Palavras Cruzadas: como a imigração está a mudar a língua portuguesa
15 minutos de leitura
Ilustração de Sérgio Veterano e Sónia Garcia
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á mais de um milénio que o português absorve estrangeirismos, diferentes formas de falar, letras e símbolos de outras culturas. Nos últimos anos, a imigração e a globalização digital têm vindo a alterar estas regras da comunicação, sobretudo entre as gerações mais novas. Será que estes novos contextos sociais, culturais e históricos estão a pôr em risco o português ou, pelo contrário, a torná-lo mais rico e forte?

“Tou no cubico, shawty / Mais tarde eu vou no corre, qualquer coisa call me.” A letra de Ivandro na música Lua, provavelmente a mais ouvida em Portugal nos últimos dois anos, podia facilmente ser uma conversa de rua em qualquer cidade portuguesa. Se nasceu antes do século XXI, é normal que tenha dificuldade em perceber um verso que, estando escrito na sua língua, é influenciado por novas palavras que refletem diferentes vivências e formas de pensar. Por novos tempos.

Mas se perguntar aos seus filhos ou netos, adolescentes e jovens que passam entre duas a três horas nas redes sociais, plataformas que têm o inglês como língua franca, a conversa talvez seja outra. De qualquer modo, fruto da evolução tecnológica ou da imigração, a maneira como comunicamos, escrevemos, lemos e falamos tem vindo a alterar-se. E há quem diga que o português está em risco. Será mesmo assim?

“Essa é uma questão que envolve a academia desde os tempos do linguistic turn, surgido nos anos 60 do século passado, quando as ciências sociais reconheceram o papel da linguagem na relação de cada um com o mundo. Assim, por um lado, reconhecemos que a língua é um instrumento de trabalho, é funcional, é um meio de comunicação. E, nesse sentido, é dinâmica. Mas, por outro, é uma coisa que se venera e que está cristalizada, sendo avessa a mudanças”, afirma André Canhoto Costa, escritor e historiador.

A língua pura não existe

Se o português tem origem no alfabeto e língua latinos, foi sendo influenciado pelo falar de muitos outros povos. Entre as invasões romanas e mouras, dois povos de origem germânica estabeleceram-se na Península Ibérica, um a norte e outro a sul do Tejo: os suevos e visigodos. Apesar de o seu domínio ter sido curto quando comparado com outras ocupações, deixou marcas que acabaram por ser incorporadas na língua portuguesa. Um exemplo: os rios Sizandro e Lizandro, e outros foneticamente semelhantes, terão sido batizados por estes povos. Também a formulação “engo”, presente em realengo ou reguengo, por exemplo, terá uma origem nesta língua germânica. E, claro, a cedilha, uma das marcas mais distintivas da língua portuguesa, provém do Z visigótico.

Mais tarde, a partir do século VII, a Península foi sendo conquistada pelos árabes. Esta presença durou quase oito séculos, tendo um forte impacto na sociedade, na cultura e na língua. Palavras relacionadas com a agricultura, ciência, comércio ou topografia foram resgatadas do árabe: azeite, albufeira, açúcar e alfazema são alguns exemplos. Mas além do vocabulário, também algumas estruturas gramaticais, verbos e até interjeições têm origem no falar árabe desses tempos.

“O século XVI foi um momento central para a língua portuguesa. Surgem duas gramáticas, uma da autoria de Fernão de Oliveira e outra de João de Barros. Ambas procuraram fundar uma língua portuguesa mantendo a tradição do latim mas assumindo a validade do vernáculo, em reação àqueles que queriam manter o latim como a língua clássica”, refere André Canhoto Costa. Hoje, o inglês assume-se como a língua que todos entendem e com a qual se consegue comunicar. “Mas é curioso constatar que, no século XVII, a Royal Society decide publicar as suas discussões em inglês, e não em latim, como sucedia com os artigos e ensaios científicos à época. Queria permitir que o conhecimento chegasse a mais gente e não apenas a uma elite. Portanto, também o inglês passou por estes desafios.”

De facto, a valorização de uma língua estrangeira como sinal de estatuto não é uma coisa nova. Os reis ingleses falavam francês durante a Idade Média e, em Portugal, o latim manteve-se como a língua de culto da Igreja Católica até aos anos 60 do século passado, mesmo que os seus praticantes não a compreendessem. “Noto que, à medida que a população portuguesa se vai tornando mais diversa, na cultura e na língua, devido à entrada de estrangeiros, existe a tendência para os mais jovens usarem frases ou expressões inglesas. Já não é assim tão invulgar ouvir portugueses a falarem com portugueses em inglês ou a misturarem o inglês com o português. Pode ser visto como uma forma de falar que está na moda, mas também como uma afirmação de estatuto social, de quem domina uma mistura de línguas na sua linguagem corrente”, afirma Adrian Mather, um inglês radicado no nosso país e diretor da Cambridge School, parceira Montepio.

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A imigração é um laboratório linguístico

“Vim para Portugal por causa da proximidade cultural e linguística”, confidencia Jean Brito, colaborador do Montepio Associação Mutualista nascido no Brasil e a viver em Portugal há seis anos. “Nas primeiras semanas achei o português de Portugal estranho. No Brasil não há muito contacto com a cultura portuguesa, e nos primeiros tempos foi difícil perceber o que se dizia por causa dos sotaques e da rapidez com que os portugueses falam. Sentia-me estrangeiro no sentido em que quase falávamos línguas diferentes”, afirma.

É evidente que o aumento significativo da imigração vai deixar marcas no tecido idiomático e pode alterar aquilo que é visto como o português padrão. Na verdade, a chegada do estrangeiro traz consigo bagagens físicas, mas também culturais e linguísticas. E quem chega é influenciado, mas também tem a capacidade de influenciar. Portugal, sobretudo nas maiores cidades, tem sido capaz de se transformar num mosaico vibrante de diversas culturas. A língua, como reflexo dessa diversidade, vai-se adaptando para abraçar expressões, palavras e nuances que antes eram desconhecidas. Nomes de cafés, ementas de restaurantes e horários de transportes são exemplos de como é possível observar essa convergência de diversas línguas e dialetos. São verdadeiros laboratórios em que o português de Portugal se entrelaça com o português do Brasil, com o inglês, o árabe, o francês, o chinês ou o crioulo.

“Na Curious Minds temos uma população-alvo de 25 crianças e 12 nacionalidades diferentes”, explica Vânia Castro, diretora deste jardim-de-infância parceiro Montepio, onde se fala português e inglês. “As crianças assimilam tudo com muita facilidade e tentam entender quem chega de forma figurada (ao país) e de forma literal (à Curious Minds). Tudo serve para conseguirem comunicar: usar vários idiomas na mesma frase, pedir expressões emprestadas aos amigos, usar a comunicação não verbal”, acrescenta.

A imigração dos países africanos de língua portuguesa é um estudo de caso notável, que criou uma diversidade linguística muito rica. “Descobri há muito pouco tempo que o bué não é português de Portugal. Estava convencido que era”, revela, sorridente, Jean Brito. Danny Silva, Bonga, Da Weasel, Buraka Som Sistema, Ivandro ou Valete são nomes que incorporam uma lírica, ritmos e temas na sua música e a oferecem a uma sociedade que se foi transformando após o 25 de Abril. Também na fala.

“Atenção que não tratamos todas as influências por igual. Temos de assumir que há um preconceito sobre a influência do português do Brasil. É vista de forma diferente da influência do inglês, por exemplo. Falar de um sotaque brasileiro chega a ser ridículo quando temos tantos e tão ricos sotaques em Portugal. É só mais uma maneira de falar português. Combater o uso de palavras como xícara ou trem, que caíram em desuso em Portugal mas que voltaram a ser ouvidas por via desta imigração é, no mínimo, bizarro”, considera André Canhoto Costa.

Muitas das palavras que utilizamos no nosso dia a dia refletem a globalização, seja a chegada de imigrantes ao nosso país, seja a transformação digital da sociedade

Império do inglês, of course

A globalização, impulsionada por diversos avanços tecnológicos e uma interconexão global que nos tornou vizinhos de todos, trouxe também uma enxurrada de palavras que se têm infiltrado no quotidiano dos falantes de português. O inglês passou a ser o meio de comunicação global, integrando a linguagem académica na gestão e economia e artigos científicos das mais variadas áreas do saber. O que seria de nós se não pudéssemos fazer o download de uma app ou postar uma selfie enquanto estamos online, aproveitando o wifi do restaurante onde estamos a comer um brunch?

“Numa reunião empresarial, em dez palavras três são inglesas. E algumas têm tradução. Não se trata apenas de incorporar conceitos que foram desenvolvidos nos Estados Unidos ou em Inglaterra e para os quais não há tradução. É uma questão de prestígio. Se disser determinado termo em inglês vou ser levado mais a sério ou considerado um especialista”, explica André Canhoto Costa.

Da tecnologia à gestão, da moda à gastronomia, os estrangeirismos tornaram-se parte integrante do vocabulário português. “O portuglish tornou-se uma língua, de facto. O turismo, a legendagem dos filmes, a explosão da Internet e décadas de ensino obrigatório de inglês fomentam a sua compreensão e utilização na linguagem do dia a dia. Depois, há cada vez mais famílias que falam duas línguas, como é o meu caso, e há cada vez mais cursos na universidade com disciplinas em inglês. Este sincretismo linguístico veio para ficar”, vaticina Adrian Mather.

Além do inglês, outras línguas vão conquistando território. Por vezes, pela maneira mais fácil: o estômago. O kebab do Médio Oriente, o quindim brasileiro, o ramen japonês ou a cachupa cabo-verdiana são palavras que já não precisam de tradução. Tornaram-se portuguesas por adoção. E, além da culinária, a cultura e as tradições vão ganhando peso na nossa sociedade.

“As pessoas viajam mais, trabalham online com colegas de outros países, têm acesso a conteúdos em língua estrangeira. Quando me perguntam se o ensino do inglês é mesmo necessário, coloco a seguinte questão: se nos últimos vinte anos a importância desta língua aumentou como se viu, conseguimos imaginar o que sucederá nos próximos vinte anos? Então, mais vale estarmos preparado”, afirma Vânia Castro.

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Estará o português em perigo?

Se a língua é vista como um elemento identitário, qualquer mudança pode ser percebida como uma ameaça à preservação da cultura e da história de um povo. Em tempos de tantos extremos, esta discussão torna-se ainda mais evidente. Há o nós e o eles. A língua falada por nós e a língua falada por eles.

“O Brasil, talvez por ser um país muito grande e conter várias realidades, está habituado a estas influências e a ter uma maior abertura a outras culturas, com a americana à cabeça. Mas também a coreana e a francesa, por exemplo”, realça Jean Brito. Mas há o outro lado da moeda: a discriminação. “Com 9 anos mudei-me da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro e, para não ser posto de parte, adotei o sotaque carioca. Noto que Portugal, por ser mais homogéneo, também é mais conservador antes de integrar estas influências.”

Por isso, os desafios que se colocam à sociedade portuguesa não se ficam pela forma como comunicamos. A pergunta principal a ser colocada é “quem somos”? Qual o nosso lugar num mundo globalizado onde falamos com todos e recebemos tantos? “Não podemos fechar-nos ao mundo. Na Curious Minds vemos as crianças a ensinarem português a quem não sabe. Temos o exemplo de uma família que chegou da África do Sul em setembro. Neste momento, é a criança que ensina, em casa, os pais a falarem português. Não estamos a pôr em risco o nosso património ou a nossa cultura. Estamos a enriquecê-lo”, explica Vânia Castro. Talvez o maior desafio, prossegue a educadora, seja contextualizar. “Num contexto de sala de aula deve falar-se um português mais clássico. No recreio, expressões popularizadas pelo Lucas Neto já são permitidas porque também são comunicação.”

Este equilíbrio é difícil. Por um lado, fazer uma call acaba por ser um anglicismo facilmente substituído por chamada. Por outro lado, dificilmente se pode esperar que feedback, de tão usado que é, seja traduzido por retroação na linguagem coloquial. Uma língua é um organismo vivo. Pode haver uma defesa mais acalorada à inclusão de palavras ou expressões importadas em domínios específicos, como no mundo académico ou no jurídico. No entanto, a resistência excessiva leva a uma estagnação e a uma separação classista, como sucedeu, no passado, entre o latim clássico, falado pela elite, e o latim vulgar, falado pelo povo.

Mas desengane-se quem achar que basta traduzir, de forma direta, expressões idiomáticas ou usar estrangeirismos para que as marcas culturais desapareçam. Há uns anos foi transmitida uma série de comédia, protagonizada por Danny deVito, com o nome luminoso It’s Always Sunny in Philadelphia. A tradução portuguesa nomeou-a com o soturno Nunca Chove em Filadélfia. Haverá marca cultural mais evidente do que este nosso fado para esperar o pior, em contraponto com o quase infantil otimismo americano?

“O Brasil, talvez por ser um país muito grande e conter várias realidades, está habituado a estas influências e a ter uma maior abertura a outras culturas, com a americana à cabeça.”

Jean Brito, brasileiro a viver em Portugal desde 2018 e colaborador do Montepio Associação Mutualista

Uma língua digital

O short message service – as sms – estava limitado a 160 caracteres por mensagem nos primeiros anos. O Twitter, a rede social usada por mais de 1,3 mil milhões de pessoas e hoje conhecida por X, limitava os seus utilizadores a 280 caracteres por mensagem, ou tweet. Estas balizas levaram à criação de abreviaturas, acrónimos e neologismos para transmitir a mesma mensagem de uma maneira mais concisa. OMG, BFF e BAE passaram a ser conceitos por si mesmos e popularizados em praticamente todas as línguas, incluindo o português.

Há uma informalidade crescente que desafia as normas gramaticais tradicionais. Se basta responder um “s” para dizer “sim”, porque haveremos de ter o trabalho de escrever toda a palavra? Afinal, a mensagem foi transmitida. Emojis, memes e gifs tornaram-se ferramentas e expressões que transcendem as barreiras linguísticas, criando uma linguagem visual global, à solta nos Whatsapps e Telegrams. Por causa disso, o objetivo é que este artigo seja 🔥, mas corro o risco de que o leitor o considere 🥱.

“Lutar contra a influência dos youtubers e dos reels é difícil”, assume Vânia Castro. As crianças aprendem a falar a partir de um ano ou dois de idade. Como o tempo que passam nos ecrãs é cada vez maior, os estímulos a que estão sujeitas também aumentam exponencialmente. Se esta exposição não for gerida pelos pais, as crianças vão assimilar muito mais depressa aquilo que é proporcionado pela tecnologia. Os estímulos do Youtube são muito mais eficazes do que os nossos, são concebidos para isso. Por isso, a atenção das crianças vai acabar por se focar mais nos ecrãs do que nas pessoas. “Combater estas influências é um trabalho árduo e contínuo que tem de ser assumido pelos pais”, conclui a educadora.

“Numa reunião empresarial, em dez palavras três são inglesas. E algumas têm tradução. É uma questão de prestígio.”

André Canhoto Costa, escritor e historiador

O que nos traz o futuro?

O Estado e as entidades públicas são sempre convocados para resolver este conflito. No entanto, a língua, por ser dinâmica e viva, não se compadece com regras ou decretos. As escolas e as universidades têm um papel crucial na formação linguística das gerações mais jovens. Moldam o seu conhecimento vocabular e gramatical, mas também ensinam como devem usar esta diversidade linguística. “O equilíbrio entre a salvaguarda e a liberdade é muito difícil. O fundamental é que a escola e os programas académicos tenham em consideração esta defesa do português. Mais do que isso pode levar-nos a decisões políticas pantanosas e ineficazes”, salienta André Canhoto Costa. Depois, é uma questão de protocolo. Um artigo científico pode estar escrito no português clássico, uma conversa entre amigos incorpora expressões estrangeiras e um grupo de Whatsapp consegue comunicar exclusivamente por gifs. E estas regras ou este protocolo existem apenas para garantir que todos percebem todos. Sem juízos de valor.

“Saber falar inglês, espanhol ou outras línguas estrangeiras tem o condão de abrir horizontes para viajar e conhecer outras realidades. Mas a verdade é que, hoje em dia, dominar o inglês e uma outra língua estrangeira é fundamental para se ter uma carreira de sucesso em praticamente qualquer tipo de trabalho. Ainda esta semana falei com um português que estava a candidatar-se a uma série de empregos em Inglaterra e tinha sido rejeitado. Não pelas suas competências académicas, mas por não ser fluente em inglês”, revela Adrian Mather.

Os programas de integração linguística para imigrantes que promovem o ensino do português como segunda língua facilitam a comunicação entre pessoas e entre culturas. Estas iniciativas visam mais do que a adaptação dos novos falantes à língua portuguesa, a sua integração cultural e social. Em vez de ser uma ameaça à identidade do português, este processo obriga a língua a adaptar-se e evoluir. “Ficamos mais preparados para a vida. Se conhecermos novas línguas, culturas e tradições, se soubermos que existe o outro, isso torna-se uma coisa normal. Nas crianças este trabalho é muito mais fácil. É nos adultos que vemos uma maior retração. E isso acaba por ser uma dupla perda: os adultos ficam sem conhecer uma outra cultura e não conseguem partilhar a sua própria língua e culturas, seja portuguesa ou não”, conclui Vânia Castro. Jean Brito concorda: “Acredito numa forma positiva de ver as coisas. Nunca deixarei de gostar da minha cultura. Mas conhecer pessoas de outros países e que falam outras línguas enriquece-me, torna-me mais sensível, mais humano, mais atento ao outro.”

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