“Não há democracia sem um bom diálogo público”

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“A tecnologia não resolve problemas políticos, mas também não é um instrumento neutro.” A afirmação de Daniel Innerarity, filósofo espanhol considerado um dos 25 grandes pensadores do mundo pelo Le Nouvel Observateur, revela apenas uma pequena parte dos desafios que a Inteligência Artificial e a tecnologia colocaram às democracias de hoje. Em entrevista à revista Montepio, o também orador da conferência “A Democracia – Impasses e desafios”, organizada com apoio do Montepio Associação Mutualista, destaca o diálogo e a tomada de decisão como dois dos pilares da democracia que não se tornaram obsoletos pela transformação digital.

De que modo a Inteligência Artificial (IA) está a mudar a democracia atual e como irá fazê-lo no futuro?

A democracia foi concebida para uma época que não é a nossa. A maior parte dos conceitos que utilizamos para perceber a política (poder, soberania, representação, divisão de poderes) nasceram num contexto que tem muito pouco a ver com as nossas sociedades atuais. Por isso, é muito difícil perceber como será a democracia no futuro, mas podemos ter a certeza de que a datificação (tendência para converter vários aspetos da nossa vida em dados) e os sistemas automatizados de inteligência artificial transformarão profundamente as nossas sociedades e devemos ter muito cuidado ao compatibilizar essas transformações com a manutenção dos valores democráticos básicos.

Temos visto como as redes sociais, a desinformação e as fake news, sobretudo, mudaram eleições e a democracia. A IA será uma ameaça maior?

A democracia tem dois pilares: o diálogo e a tomada de decisão. Ambos são afetados pela digitalização. Não há democracia sem um bom diálogo público e o desenho do sistema comunicacional, neste novo ambiente, continua por fazer. A tomada de decisões pode ser ajudada por dados e algoritmos, mas cabe a nós, cidadãos, estabelecer que partes do processo público são automatizáveis e quais não são.

Por que razão ainda não encontrámos uma solução, um antídoto para essas ameaças?

A tecnologia avança a uma velocidade tal que teremos de desenhar esses antídotos e estudar a tecnologia disponível muito cuidadosamente. Teremos de compreender o seu significado democrático através de um diálogo que envolva muitos atores e disciplinas.

Pensava-se que a tecnologia iria salvar a democracia, mas estamos a ver o oposto. Como podemos equilibrar o modo como a tecnologia influencia o processo democrático?

Temos de perceber que a tecnologia não resolve problemas políticos, mas também não é um instrumento neutro. Precisamos, isso sim, de explorar até que ponto estas novas tecnologias condicionam a nossa vida política. Condicionar não é o mesmo que determinar ou ser neutro.

Espanha foi o primeiro país da Europa a lançar uma agência de IA. É uma ferramenta importante para regular os desafios e perigos da IA? Será que vai dar certo?

É um enorme desafio e uma necessidade absoluta, cujo sucesso dependerá, a meu ver, de olhar para estes desafios e perigos a partir de uma visão holística, porque a inteligência artificial afeta muitas coisas e tem de ser abordada a partir de diferentes perspetivas.

REVISTA MONTEPIO

10 questões para compreender os novos anos 20

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O fim dos grandes estadistas

Qual será o papel dos políticos na próxima década? Será que vão transformar-se em ativistas sociais que estão constantemente a tentar construir a confiança do público? Irão evoluir para tecnocratas ou conseguiremos trazer de volta os grandes estadistas dos anos 1970 ou 1980?

Nas décadas de 1970 e 1980 era muito mais fácil ser-se um grande estadista do que hoje. Ser político nesta década pressupõe gerir uma maior interdependência, volatilidade, crise e complexidade do que aqueles políticos tiveram de lidar.

Mas como podemos trazer estadistas para a política quando há tanto stress e danos pessoais, hoje em dia, nesta carreira?

Ser-se político profissional tem custos pessoais dos quais o público não tem conhecimento: um percurso profissional tremendamente incerto e uma remuneração muito pequena tendo em conta as responsabilidades envolvidas.

Winston Churchill disse em 1909: “Se eu tivesse que resumir o futuro imediato da política democrática numa única palavra, diria segurança”. A democracia já não garante segurança?

A única coisa que a democracia garante (e isto não deixa de ser importante) é que o exercício do poder seja contrabalançado, limitado no tempo e que as suas decisões sejam passíveis de revisão.

O Montepio Associação Mutualista, que apoia esta conferência, é uma das mutualidades mais antigas da Europa, e também uma das maiores. Durante a ditadura portuguesa (1926-1974), o Montepio não foi bem recebido pelos políticos, devido aos seus valores democráticos. Como podem os valores mútuos – liberdade, solidariedade – melhorar o processo democrático no futuro?

Estudei o mutualismo de [Pierre-Paul] Proudhon e sempre pensei que se o confronto entre [Karl] Marx e Proudhon tivesse resultado numa vitória deste último, teríamos uma esquerda menos ligada à ideia de um Estado interveniente e, portanto, a esquerda estaria em melhor posição para compreender e gerir as realidades atuais numa sociedade mais horizontal.

Viveu em vários países. Qual deles tem uma democracia melhor e porquê?

Ao viver em diferentes países aprende-se que os valores democráticos são vistos de diferentes maneiras em distintas sociedades e que poucas coisas são transportáveis ​​de uma para outra. Em segundo lugar, qualquer qualidade admirável tem alguns aspetos negativos. Os Estados Unidos foram a primeira democracia do mundo e hoje sofrem com o racismo e a desigualdade. França tem um Estado admirável, mas é muito pouco europeizado. Na Alemanha admiro a capacidade de compromisso que falta em Espanha. A Grã-Bretanha tem uma tradição democrática impressionante, mas está a pagar caro pelo erro do Brexit. A Itália é um país à beira do colapso político, mas está sempre a salvo da queda.

Quem é Daniel Innerarity?

Filósofo, pensador e professor de Filosofia Política e Social na Universidade do País Basco, Daniel Innerarity foi considerado um dos 25 grandes pensadores do mundo pela revista Le Nouvel Observateur. Innerarity, que também leciona a cadeira de Inteligência Artificial & Democracia na School of Transnational Governance (STG), em Florença, Itália, é autor de diversos livros de filosofia política, entre os quais Política para Perplexos ou A Política em Tempos de Indignação, pelos quais recebeu vários galardões. Por exemplo, o Prémio de Ensaio Miguel de Unamuno, em 2003.

Em Portugal, o filósofo espanhol foi o orador principal da conferência “A democracia – impasses e desafios”, organizada pelo projeto BEIRA – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão e que contou com o apoio do Montepio Associação Mutualista.

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