Solidariedade na Montanha: uma história de superação

Solidariedade na Montanha: uma história de superação
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Fotografias de Rodrigo Cabrita
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iz-se que os gatos têm sete vidas. É uma questão de habilidade, flexibilidade, rapidez e instinto. No caso de Américo Lourenço, autor de quatro livros e vigilante de segurança, as vezes em que voltou a viver não são facilmente explicáveis. O Associado Montepio encontra, no entanto, uma chave para decifrar o que o fez reerguer-se dos vários acidentes e incidentes que sofreu ao longo da vida: houve sempre alguém a dar-lhe a mão. É esta a ideia central do seu mais recente livro, Solidariedade na Montanha.

Na história contada por Américo Lourenço, um grupo de amigos caminha na montanha, tentando escapar à escuridão que se avizinha. “A natureza tem segredos escondidos”, avisa o autor e Associado Montepio, para quem “estender um braço para levantar alguém” é um gesto fundamental da existência humana. Solidariedade na Montanha (2021, Emporium Editora) é, também por isso, uma história de amor, ficcionada, mas inspirada em situações vividas por Américo, de 59 anos. Se não fossem as mãos que lhe apareceram pelo caminho, teria Américo seguido em frente? Talvez não, e esta é uma lição a reter.

Como o próprio explica à mesa de um café em Sines, onde vive e lembra a sua vida à Revista Montepio, o mundo atual tem uma urgência: “Temos de ser cada vez mais solidários.” O percurso de Américo é raro, difícil, mas nele encontrou sempre uma saída. Aos 4 anos, foi atingido por um comboio num antigo apeadeiro de Lisboa. Dois anos depois, foi atropelado por um carro. Quando tinha 19 anos, sofreu o embate de um automóvel em Cete, Penafiel, foi projetado pelo ar e teve como destino a parte de baixo de um camião que circulava em sentido contrário. “Fui arrastado na estrada mais de quatro metros”, conta Américo. Como se não bastasse, para trás ficou uma infância de maus-tratos e dificuldades financeiras e, já adulto, sofreu de cancro. Olhando a números, conta na vida 20 intervenções cirúrgicas e 21 internamentos.

Mas, em vez da revolta, o que Américo Lourenço deixa é uma pergunta incisiva: “Se eu não tivesse tido os acidentes, se não tivesse sido maltratado, se não tivesse tido este percurso de infância, será que hoje teria esta postura? As pessoas apareceram-me, talvez, porque Deus as colocou no meu caminho. Sou crente, mas não é a religião em si… São as pessoas e as suas atitudes.”

“Escrevo desde que me conheço. É uma maneira de retribuir o que outros fizeram por mim e cujas atitudes fazem-me sentir eternamente grato”, relata Américo Lourenço

A atitude de Américo Lourenço é de resiliência, trabalho e luta. “Não estou estagnado”, sublinha. Antes de Solidariedade na Montanha, publicou três livros. Escreve porque fá-lo sentir-se bem, porque ajuda a passar a lentidão das horas como vigilante (há vinte e seis anos e por turnos) na administração do Porto de Sines, mas também porque acredita que é seu dever partilhar um testemunho como o seu, de superação. No fundo, esta é uma escrita que existe para promover a solidariedade, para fazê-la crescer.

“Aproveito os tempos mortos para ler, pesquisar e tirar as minhas notas”, explica Américo. Já está a fazê-lo, aliás, para um próximo livro. Além disso, tem mais de 800 participações escritas na imprensa local e nacional, bem como uma série de crónicas lidas na rádio (é o caso da rubrica “Retrato Social”, na Rádio Sines). A juntar a esta energia, Américo Lourenço é, ainda, um cidadão ativo, que batalha pelos seus direitos e sonha com o futuro – depois de ter concluído o programa Novas Oportunidades, anseia tirar um curso superior. “Se sou uma pessoa revoltada? Até sou, mas não transmito isso no que faço. E é muito graças a todas as pessoas que me ajudaram.”

Solidariedade a cada passo

A primeira pessoa a estender a mão a Américo Lourenço foi António Costa, proprietário de uma mercearia em Lisboa. Foi ele quem o socorreu na sequência do acidente com o comboio. Num Morris Mini com o pneu furado, António transportou Américo até ao Hospital de Santa Maria, enquanto a mãe tentava salvar a criança recorrendo à respiração boca-a-boca. Américo Lourenço recuperou mas ficaram mazelas para toda a vida. “Estive internado num instituto de recuperação para acompanhamento psicopedagógico. Quando saí, fui encaminhado para uma classe de ensino especial. Concluí o ensino primário com 14 anos”, conta.

Em 1984, pouco depois do acidente em Cete, Augusto e Fernanda Esteves, um casal que havia conhecido nos encontros de uma comunidade evangélica na Baixa lisboeta, convidaram-no a viver na Casa da Missão, em Camarate, Loures. Depois de uma infância com “muitos traumas e dificuldades”, foi aí que Américo Lourenço sentiu ter atingido, finalmente, “as condições mínimas de existência”, como define.

Em cinquenta e nove anos, foram muitas as pessoas que apareceram no seu caminho. Inspiraram-no, fizeram-no querer continuar. “Com muita persistência e ajuda de pessoas que me queriam bem, recuperei e, ainda que com bastante dificuldade, consegui arranjar trabalho, fiz parte de um coral evangélico, fui voluntário durante doze anos num evento para crianças e adolescentes na Alemanha, fui tripulante de um navio, doador da Assistência Médica Internacional, voluntário na Exposição Mundial dos Oceanos, na Expo ‘98…”, enumera Américo. No Montepio Associação Mutualista, por sua vez, encontrou valores que, tantas vezes, foram o retrato da sua própria vivência: a solidariedade, a igualdade e a liberdade. O respeito pelos outros. A reciprocidade.

Apesar dos muitos interesses, a constante vida deste Associado Montepio é a escrita. “Escrevo desde que me conheço.” Apenas em 2012, no entanto, começou a publicar. “É uma maneira de retribuir o que outros fizeram por mim e cujas atitudes fazem-me sentir um ser humano eternamente grato.”

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