e faz parte de uma geração que cresceu com posters dos Beatles, U2, Metallica, Coldplay ou Radiohead nas paredes do quarto, temos uma má notícia. As bandas de música podem ter os dias contados. Saiba porquê.
A meio da adolescência, João Marcelo formou, com os amigos de rua, a banda Os Passos em Volta. “A introdução ao instrumento foi o fator agregador. Antes de haver interlocutores, há amigos. Acabamos por ter nos nossos amigos o público para o que fazemos”, explica por telefone à revista Montepio. Estávamos em 2008 e com a banda veio a formação de uma editora independente que ainda hoje existe, a Cafetra Records. A banda lançou um álbum e desapareceu no meio dos vários projetos em que os elementos se focaram: Júlia e Maria Reis formaram as Pega Monstro e lançaram projetos a solo, assim como João Dória. E João Marcelo começou a atuar sob o pseudónimo Éme. “À medida que as vidas vão evoluindo fica cada vez mais difícil marcar ensaios. Este não pode, aquele não pode…”, justifica.
A música independente é o berço das bandas. Cinquenta anos antes da formação de Os Passos em Volta, a amizade foi também o rastilho para a criação de bandas como os Beatles. John Lennon, de 16 anos, conheceu Paul McCartney, acabado de fazer 15, e convidou-o para a sua banda. McCartney levou o amigo George Harrison, de 14, e estava formada a base dos Fab Four.
Ao longo das décadas, muitas outras bandas se formaram quando os respetivos elementos estavam a começar a aprender um instrumento ou a realizar formação musical. É aqui que entram as pequenas editoras, como a Cafetra Records, e outras como a Cuca Monga, a Lovers & Lolypops, a Xita Records, a pioneira FlorCaveira e a recente Discos Submarinos, do cantautor Benjamim.
Todas elas têm no seu portefólio mais artistas a solo do que bandas. É, na verdade, um dos segredos mais mal guardados da indústria da música, garante Richard Osmon, autor britânico e apresentador do podcast The Rest in Entertainment. “Na primeira metade da década de 1980 tivemos 146 semanas com as bandas na primeira posição dos tops. Na primeira metade da década 1990, foram 141 semanas. Na primeira metade dos anos 2020, tivemos três semanas, sendo que numa foram os Beatles”, afirmou. As bandas de música são mesmo coisa do passado?
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A música é cíclica
A resposta é sim, e era esperado que tal acontecesse. “Os projetos a solo sempre foram predominantes no domínio da pop music”, explica Luís de Freitas Branco, crítico musical e autor do livro A Revolução antes da Revolução, que explora a revolução cultural que antecipou o fim da ditadura. Na década de 1950, a indústria era dominada por artistas a solo como Elvis Presley, Frank Sinatra, Pat Boone ou Cliff Richard. Para o autor, a anomalia ocorreu na década de 1960: “Foi consequência da popularidade revolucionária dos Beatles, que impôs uma miragem temporária: os grupos, e os álbuns de relevância histórica, são o caminho em frente, em oposição aos artistas a solo e as canções avulso, ao sabor do momento.” Nas décadas seguintes, sobretudo a partir da década de 1980, retomou-se a normalidade, que hoje prossegue: os artistas a solo e as canções dominam as tabelas de streaming.
Portugal segue tranquilamente a tendência global. Após o boom do rock e do surgimento de grupos como as Doce, em meados da década de 1980, entraram em cena nomes como José Cid, Rão Kyao ou Marco Paulo a dominar as tabelas. Foi a década dourada de Jorge Palma e que nos trouxe ainda Ar de Rock (1980), de Rui Veloso. Mas, para Luís de Freitas Branco, a nossa época dourada de bandas é a de 1990: “[Tivemos os] Madredeus, Resistência, Delfins, Rio Grande, Silence 4 e ainda o advento de uma nova pop com os Excesso, Santamaria e Santos & Pecadores”, refere. Nos anos seguintes, epifenómenos como os Deolinda e os Humanos conviveram com a norma dos artistas a solo. Hoje, Ivandro, Carolina Deslandes, Diogo Piçarra, Fernando Daniel e muitos outros solistas lideram os tops das músicas mais streamadas e compradas. E a tendência não abrandará.
“A prioridade do mercado não são os álbuns, mas as canções. Idealmente, de artistas a solo que constroem uma narrativa e persona individualista, que extravasa a produção musical”
Show me the money
Gestão de egos, dificuldade em conciliar horários e em encontrar uma sala para ensaiar são três das várias razões que sustentam a tese do fim das bandas. Mas há outra maior: o dinheiro. “A remuneração dos artistas por música gravada baixou imenso desde o advento do streaming, que é a principal forma de consumo de música atual”, explica Miguel Cadete, diretor do Blitz, o principal meio de comunicação musical português e que, tal como a Revista Montepio, completa 40 anos em 2024. “É matemática”, continua. “Se a remuneração dos artistas baixa, esse rendimento a dividir por três, quatro ou cinco pessoas, autores ou intérpretes, revela-se ínfima. Muitas vezes, a viabilidade de uma carreira artística está dependente de ser apenas um artista singular e não coletivo.”
Na conversa com João Marcelo, ou Éme, não perguntamos diretamente por dinheiro. Mas o tema está sempre ao virar da esquina. “Lá está”, confessa. “Voltamos sempre ao mesmo. Eu quero fazer música e dá para fazer com o dinheiro que há. E a arte molda-se às circunstâncias. Não é uma questão de lucro, mas de possibilidade.”
Depois da dissolução de Os Passos em Volta, João Marcelo lançou três álbuns como Éme: Gancia (2012), Último Siso (2014) e Domingo à Tarde (2017). Produzidos por nomes como Luís Severo, B Fachada ou Benjamim, os dois últimos foram gravados com banda de apoio. “Os outros músicos eram quase editores. Eu fazia a música. Se alguém não gostasse, ia para casa e refazia. Quando consigo escapar ao individualismo, sinto que produzo melhor trabalho”, explica.
Em 2022, João juntou-se a Mariana Pita, que atua com o nome Moxila, para o álbum homónimo: Éme e Moxila. Sucederam-se os concertos e, este ano, um novo álbum novamente a solo: Disco Tinto. Apresentou o álbum em formato banda de cinco, mas já são apenas três. “Com o público que eu tenho é impossível andarmos cinco na estrada. Não é fazível. Nem é uma questão de lucro, mas de ir aos sítios.”
A banda como utopia
No início, era a rádio e o vinil. Depois vieram os compact disc (CD), a partilha de ficheiros na internet e, por fim, a era do streaming. A evolução tecnológica influenciou a oferta de mais música, mas também a individualização. “Podem fazer-se discos no quarto ou numa sala, por uma só pessoa”, explica Miguel Cadete. A sociedade está, ela própria, mais “individualista ou egoísta”, admite o diretor do Blitz, e por isso um grupo ou uma banda deixam de desempenhar um papel de identificação por parte de quem consome a música: os fãs. “A identificação do fã de música com o seu artista preferido, com o seu ídolo, é mais fácil com o artista individual do que com uma banda. A coisa da banda parece-nos quase uma utopia: quatro pessoas que lutavam contra o mundo”, continua.
São raras, mas ainda as há. Os donaranha, formados no Porto em 2020, seguem a fórmula clássica do rock: guitarra, baixo, voz e bateria. “Começámos aos 15 ou 16 anos, ao mesmo tempo que muita gente [na RockSchool] estava a juntar-se em bandas”, explica Leonor Cunha, guitarrista que frequenta atualmente a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE). Leonor já produzia música em casa mas, sendo guitarrista, admitiu que não tinha arte para tocar outros instrumentos. “Não tinha muito interesse em música só de guitarra, e usava a produção como método de experimentação. Isto apesar de também ter um projeto a solo de música eletrónica”, conta.
A banda sobreviveu ao flop do primeiro concerto, que acabou por ser cancelado, contornou as dificuldades em encontrar um local para ensaiar – “a casa do João [Valente, baixista] tem um anexo que foi transformado numa sala de ensaios – e manteve-se unida apesar de o lançamento do primeiro álbum, para o qual gravou 15 músicas, ter sido adiado para os próximos meses.
“Ter uma banda é entreajuda”, garante Leonor Cunha. “Juntos, fazemos mais do que qualquer um de nós sozinho.” Ter uma banda também dá trabalho. Muito. “Não entendo como é que as pessoas conseguem ter carreiras a solo. Não sou a pessoa mais motivada do mundo e a maioria dos jovens da minha idade [22 anos] também não. E preciso de ter uma banda para conseguir fazer coisas. Puxamo-nos uns aos outros”, confessa.
Há o reverso da medalha. E que reverso. “Em Portugal, sinto que só sobrevive uma banda por geração. As outras desistem ou abrandam, ou ficam uma espécie de vanity project dos seus elementos”, afirma Éme.
Como será o futuro?
Há quatro anos que Luís de Freitas Branco recolhe dados do Spotify para contabilizar as canções, géneros e nacionalidade dos artistas mais ouvidos em Portugal. No ano passado, 75% das 520 canções que estiveram no top semanal eram de projetos a solo, um aumento de 14% em comparação com 2022. “Hoje, a prioridade do mercado não são os álbuns, mas as canções. Idealmente, de artistas a solo que constroem uma narrativa e persona individualista, que extravasa a produção musical”, explica.
Das bandas para os artistas a solo e destes para as canções. É provável que o futuro siga por aqui. Canções de três minutos, para não cansar os ouvintes, e de preferência com muitos autores, para dividir o dinheiro numa altura em que a Inteligência Artificial (IA) já se faz ouvir. Um exemplo: a canção We Pray, incluída no novo álbum dos Coldplay, tem 14 autores. “A IA vai ter um papel muito grande na produção de música”, diz Miguel Cadete. “O papel dos autores vai ser profundamente alterado com a possibilidade de se fazer música a partir de outras músicas, adaptadas a nós.”
Para as bandas, o cenário não muda assim tanto. “Para nós, quatro pessoas juntarem-se é muito mais valioso do que o dinheiro. Numa sociedade mais individualista, é bom não o sermos. É aí que trazemos a diferença. É mais raro e isso traz frescura à ideia da música independente.”
As bandas não vão acabar, mas estão mais escondidas. “Em Lisboa, nos submundos, começa a haver outra vez bandas. Os miúdos fazem sempre bandas. Isso nunca vai deixar de acontecer”, garante Éme. E há até muitos exemplos de pessoas cuja música ganhou asas quando deixou o corpo de quem a fez. “O Paul Simon só conseguiu ter sucesso com Art Garfunkel. Leonard Cohen viveu décadas na sombra dos êxitos que outras pessoas tinham com as suas músicas. Há muitos nomes individuais que fazem coisas coletivas”, salienta.
“Estas transformações ocorrem”, diz Miguel Cadete. “Olhamos para a história e vemos que ocorrem. Mas se me perguntares ‘em que sentido?’, já é mais complicado responder.” Prognósticos? Só no fim.
“A remuneração dos artistas por música gravada baixou imenso desde o advento do streaming, que é a principal forma de consumo de música atual”
Éme: Retrato do artista enquanto jovem
Um, dois, três, quatro, cinco pessoas. Haja espaço e dinheiro, João Marcelo, ou Éme, acomoda-se a todas as necessidades musicais. “Há o modo acústico e [o modo] ligado. E não sou um caso isolado. Arranjo maneiras de continuar. Fazer o que é possível. Não de uma forma derrotista, mas como uma virtude, contornar os entraves”, conta à revista Montepio.
O guitarrista da banda teenager Os Passos em Volta é sobejamente conhecido na música independente portuguesa, a mesma que, ao longo das décadas, albergou bandas como Xutos & Pontapés, Heróis do Mar, GNR, Clã, Capitão Fausto e tantas outras. Algumas sobrevivem, outras ficaram pelo caminho. Outras, ainda, vivem à sombra de ex-membros. Miguel Araújo tem (muito) mais sucesso a solo do que nos Azeitonas, Marisa Liz deu visibilidade aos Amor Electro e José Cid garantiu que ninguém se esquece do Quarteto 1111.
“Em termos de espetáculo, temos muitas modalidades: eu sozinho, Éme e Moxila, o trio e a banda”, explica. Todas estas experiências influenciam a música que compõe. “O livro How Music Works, do David Byrne, fala um bocado sobre como os sítios e as circunstâncias influenciam o trabalho. Eu gosto disso e acho interessante.”
Durante a viagem musical, Éme deixa o rasto do seu trabalho em plataformas como Bandcamp, que acabam também por ser impressões digitais de como a sua obra muda a cada ano. Depois do EP [Extended Play, em inglês. É um disco com 4 a 6 canções] experimental Passa-se Alguma Coisa Estranha por Aqui [2011], e de três álbuns lançados em 2012, 2014 e 2017, os últimos dois com recurso a uma banda, Éme ganhou uma vida extra com o lançamento do aclamado álbum Éme e Moxila, em março de 2022, composto a meias com Mariana Pita, a Moxila. “Há um brilho especial em compor a meias, em vários moldes e sem grandes metodologias”, explica.
O sucesso de Éme não chegou ao mainstream. Há uma linha que divide os artistas profissionais, que têm o apoio de uma equipa de técnicos, comunicadores e marketeers, e os amadores que navegam as águas do DIY [Do it yourself, faça você mesmo, em inglês]. Em 2024, Éme lançou Disco Tinto, um álbum caseiro, e promete novidades para 2025. “Espero ter um álbum novo e fazer mais uns concertos.” Com ou sem banda, o mais provável é que a música continue sem lhe pagar as contas.