aúde, dinheiro, divórcios. Mães, especialistas em saúde mental e em finanças pessoais explicam os erros de comunicação que se cometem e como ajudar os mais novos a compreenderem os assuntos difíceis.
Será hoje o dia certo para lhes falar sobre a minha doença? Quando pela primeira vez soube da suspeita de um cancro de mama, Patrícia Nunes decidiu esperar pelo diagnóstico antes de contar às filhas, então com 5 e 10 anos. Mas assim que se confirmou que tinha uma doença oncológica, começou a planear a melhor forma de abordar o tema. Durante alguns dias, foi adiando aquela conversa difícil. “Queria que tudo fosse perfeito, que as miúdas não estivessem chateadas, que não houvesse atrasos.” Mas depressa Patrícia compreendeu que “a perfeição não existe”. E a pressão do início dos tratamentos, com a perspetiva de perda de cabelo, exigia uma conversa aberta com Letícia e Valéria.
“Algumas pessoas diziam-me que um familiar tinha optado por não contar. Entendo perfeitamente: contar é complicado. Mas se as coisas não estiverem a correr conforme o esperado, caso demore mais tempo, e as crianças acabem por perceber, sentem-se magoadas”, diz a especialista em comunicação, atualmente com 41 anos. Patrícia faz questão de sublinhar que quem opta por não falar abertamente sobre a sua doença não está a “usufruir de um amor” que poderia contribuir para a sua cura. “As crianças são excecionais no seu carinho”, afirma.
Recorrendo ao instinto de mãe, a também Associada Montepio sentou-se com o marido e as filhas e anunciou-lhes: “Meninas, a mãe está com um problema de saúde. É um cancro. Vamos resolver, já falei com a médica, que é excelente.” Recorda-se das lágrimas a correrem pela face das filhas e dos seus abraços. “A mãe é muito forte, a médica é muito boa”, disse-lhes também num tom que descreve como “uma atitude positiva”. Contudo, faz questão de sublinhar que não devemos ser excessivamente positivistas. “Há dias em que as coisas podem correr mal, em que estamos maldispostos, de cama e não conseguimos dar-lhes o jantar.”
Para a psicóloga Eva Pires, não existe um guião. O discurso deve ser adaptado à situação, ao perfil e à idade da criança. “O primeiro conselho é escolher um momento em que o adulto se sinta regulado emocionalmente, pois o assunto requer uma dose extra de coragem e sensibilidade”, explica a especialista da Clínica do Gil (conheça mais sobre este projeto abaixo).
Deve-se, igualmente, explorar qual é a compreensão que a criança já estabeleceu sobre o tema. “Por exemplo: está a ouvi-lo pela primeira vez? Quais são os seus medos e receios?”, questiona Eva Pires. E também tentar compreender as falsas crenças que poderá já ter concebido, sendo que, para corrigi-las, deverá usar uma linguagem simples e acessível. No caso das filhas de Patrícia Nunes, a mais velha, Letícia, já tinha consciência do que é a doença. “A palavra cancro é muito pesada para nós, adultos, e para as crianças. Principalmente para a mais velha, que sempre gostou do Walt Disney e sabia que ele tinha falecido com cancro”, conta a mãe. Houve então uma conversa aberta e a disponibilidade para responder a dúvidas. “Elas fizeram-nos perguntas que eu, se calhar, não iria explicar dessa forma. Mas visto que elas queriam, acabámos por explicar.” Como refere Eva Pires, deve dar-se prioridade a uma explicação acessível e adequada, abordando brevemente os sintomas que poderá começar a percecionar, mas poupando a criança “a jargões ou detalhes médicos excessivamente complexos”.
Patrícia Nunes acabaria por escrever o livro infantil Clara, a Boneca Sem Cabelo (maio 2024, Cordel d’Prata), que ajuda as famílias a abordarem este tema com as crianças. “É a nossa história, inspirada nos bonecos que temos no quarto e que lhes deram tanta esperança e fé”, descreve.
Praticar a escuta ativa
Além de situações de doença, muitos outros temas podem ser desafiantes na relação entre pais e filhos. “Há um leque de temas que são mais sensíveis, pois provocam em nós uma reação intrínseca que dificulta a exposição à vulnerabilidade, à partilha, ao diálogo. Esses temas variam conforme as histórias de vida, a idade das crianças e a relação estabelecida no seio familiar”, explica Eva Pires. A psicóloga da Clínica do Gil, unidade de saúde parceira do Montepio Associação Mutualista, explica que o modo como os pais lidam com as primeiras partilhas – sejam medos, ansiedades, situações na escola, dificuldades em pedir desculpa após um momento de maior tensão familiar – é um dos fatores que “determina a facilidade ou dificuldade em conversar sobre outros temas à medida que as crianças crescem”. Para a psicóloga, esta é a lição essencial. “Se houver investimento na relação familiar, a comunicação, a partilha e a confiança serão promovidas de forma natural e gradual.” Para fomentar o hábito de as crianças partilharem o que pensam e sentem é importante a realização de atividades em conjunto, conversar sobre o dia a dia de cada um, ler histórias sobre diferentes assuntos, manter um diálogo aberto sobre o mundo.
A primeira vez que Aurora se confrontou com o tema da morte tinha 4 anos. Ainda que não tivesse consciência dessa palavra, estava a ver Cinderela, da Disney, quando perguntou: o que aconteceu ao papá dela? A mãe, Teresa Sobral, explicou que, como estava muito doente, transformou-se numa estrelinha. “Ela processou, mas só repetiu o que eu disse: que estava muito doente, com muita febre”, descreve a legal manager de 36 anos. Desde o primeiro aniversário de Aurora que os pais têm lido sobre parentalidade consciente, tendo como referência o médico Gabor Maté. “Não quero esconder nem banalizar o tema da morte. Conheço pessoas que, antes de a criança fazer uma questão [difícil], começam logo a falar de certos assuntos. Nós vamos ao ritmo da Aurora”, refere Teresa.
“Não quero esconder nem banalizar o tema da morte. Conheço pessoas que, antes de a criança fazer uma questão [difícil], começam logo a falar de certos assuntos”
A psicóloga Eva Pires recomenda que o adulto pratique a escuta ativa, percebendo o ponto de vista da criança, como está a processar a situação e o que necessita naquele momento. Esse é, precisamente, o ponto de vista da educadora Patrícia Moniz, de 36 anos. Quando está na sala com as crianças do jardim-de-infância, com idades entre os 3 e 6 anos, costuma questioná-las sobre um determinado tema e depois partir das respostas para criar as atividades a desenvolver. “É sempre bom escutar a criança, perceber o que já sabe sobre o assunto”, refere. Da vez em que lhe perguntaram porque é que o coração bate, abordou não só a saúde, mas também as emoções. “Uma questão pode dar azo a outras questões. São assuntos abordados de forma simples, envolvendo as famílias, e que deixam as crianças a refletirem porque ficam mais curiosas”, descreve.
Patrícia Moniz é também mãe de Mateus, de 6 anos, e um dos maiores desafios que ele lhe colocou até hoje foi a resposta à pergunta: como nascem os bebés? “Ele é uma criança bastante curiosa e ao longo do crescimento foi colocando algumas questões. Enquanto não percebe mesmo o assunto, não descansa. Tenho de lhe explicar, de um modo simples, com situações que lhe são próximas, que ele reconhece, da rotina diária, dando exemplos.” Foi assim com a pergunta sobre os bebés. “Ele perguntava se as mães engoliam uma sementinha. Inicialmente, não aprofundando muito o assunto, explicava que a mãe e o pai, como gostam muito um do outro, dão muito amor. Quando não estamos à espera de certas questões, ficamos sem resposta no momento. E depois temos de dar tempo para pensarmos qual é a resposta mais adequada. [Por exemplo], tentar arranjar um livro que seja adequado para a idade”, diz Patrícia Moniz.
“Quando não estamos à espera de certas questões, ficamos sem resposta no momento. E depois temos de dar tempo para pensarmos qual é a resposta mais adequada”
Como falar sobre os dois D (dinheiro e divórcio)?
Outro assunto difícil é o da separação ou divórcio. Mariana Pimentel será uma das dinamizadoras do “Crianças no Meio do Conflito”, um grupo de pais adaptado do projeto Children in Between e que arrancará no início de 2025. Durante um mês, em oito sessões online, este programa vai apoiar famílias que estão a viver o processo de separação. Segundo a psicóloga clínica, o grupo procurará “formas mais eficazes para os pais comunicarem as necessidades dos seus filhos” e, assim, melhorar “o desenvolvimento saudável de pais e jovens”.
A coordenadora da formação na Psikontacto explica que não há uma resposta certa, ou uma fórmula mágica, no momento de comunicar aos filhos a decisão de uma separação: “É importante adequar ao desenvolvimento, ao entendimento da criança perante a situação, ao nosso estado emocional quando comunicamos.” Nestes momentos, as crianças e jovens podem sentir-se culpadas, pelo que é necessário sublinhar que esta foi uma decisão do casal e que serão sempre uma família. “É uma ligação que fica para todo o sempre”, refere Mariana Pimentel, sublinhando a importância da prevenção na área da saúde mental e referindo que existem sinais de desajustamento da criança (emocionais, comportamentais, sociais, escolares) a que se deve estar atento. Nestas situações, pode ser necessária ajuda com profissionais de saúde mental.
Dinheiro e finanças familiares. Cristina Judas estava completamente alheada destes temas quando, em 1998, se preparava para entrar na faculdade. “Os meus pais perderam todo o seu património e foi um primeiro choque com a realidade.” Sem adivinhar a gravidade da situação familiar, aos 17 anos viu-se à porta da licenciatura em Engenharia sem capacidade para pagar as despesas. O curso foi concluído graças ao apoio de um tio, que lhe dava 60 contos mensais (505 euros a preços atuais e aplicada a inflação) para as propinas, a alimentação e a roupa. “Com essa mesada veio uma grande responsabilidade: eu tinha 5 anos para terminar o curso, nem mais um dia, nem mais um escudo.” Encaixar tudo naquele valor foi “um processo com muitas falhas e stress”, mas que criou também em Cristina Judas a noção de que é necessário ter outra abordagem com as nossas finanças. “O meu primeiro ordenado, ao contrário da maioria das pessoas, não foi para comprar um carro, mas para fazer uma poupança para a reforma, que tenho até hoje”, explica. Os vinte anos seguintes foram passados no setor da construção, com obras em mais de 12 países. Mas, quando o filho Tomás nasceu, sentiu um “revival”, como descreve, daqueles anos de dificuldade e decidiu aprender mais sobre finanças pessoais para conseguir ensiná-lo, primeiro, e depois à filha Teresa.
Nos primeiros tempos, cometeu vários erros. Um deles foi dar a Tomás, acabado de fazer um ano, um mealheiro opaco. “Transportamos para a cabeça das crianças um conjunto de abordagens que não são muito adequadas ao seu nível de neurodesenvolvimento. Elas são visuais, têm de ver as coisas tangíveis”, diz Cristina Judas. Se colocarem o dinheiro numa caixa fechada, não veem para onde ele vai. “É por isso que os chocalham, para terem a sensação do que está lá dentro.” Desde abril de 2023 que Cristina tem o projeto Hey! Möney, baseado na perspetiva de que “a educação financeira não é uma técnica pura, é ciência social”.
Não há perguntas impossíveis de responder, garante Cristina Judas. “Os casos podem ser mais ou menos complexos, depende da estrutura familiar. Às vezes, as famílias acham sempre que o problema está nos filhos e não neles.” Da sua experiência, há pais que procuram ensinar os filhos desde muito pequenos, mas outros só ganham esta consciência quando os filhos já são adolescentes. “Tem que ver com o que se passa em casa e foi construído até essa altura. Eles estão a mimetizar comportamentos que validam dentro de casa”, diz. Para a especialista, nunca é tarde para aprender a lidar e falar de dinheiro. “Aproveitamos as características naturais das crianças: curiosidade, motivação, entusiasmo, pensamento crítico, tomada de decisão. São softskills que, quando entramos para o mundo corporativo, levamos anos a desenvolver em novas formações.” E se projetos como o Ei – Educação e Informação, do Montepio Associação Mutualista, nos ajudam a tomar melhores decisões financeiras, é no seio da família que podemos aprender e moldar-nos na sempre difícil tarefa de gerir o nosso dinheiro.
“Transportamos para a cabeça das crianças um conjunto de abordagens que não são muito adequadas ao seu nível de neurodesenvolvimento. Elas são visuais, têm de ver as coisas tangíveis”
O projeto social da Clínica do Gil
Criada na primavera de 2024, a Clínica do Gil dedica-se à promoção e intervenção em saúde mental infantojuvenil: bebés, crianças e jovens até aos 18 anos. A clínica, na qual os associados Montepio têm 10% de desconto, surgiu da necessidade de dar resposta na Casa do Gil, um lar de acolhimento. “Começámos a procurar respostas na comunidade e percebemos que não era fácil”, explica Patrícia Boura, presidente da Fundação do Gil.
Localizada na Avenida do Brasil, em Lisboa, a clínica oferece “uma abordagem integrada e multidisciplinar” em pedopsiquiatria, psicologia, musicoterapia e terapias pelas artes, psicomotricidade e terapia da fala. Aberta a toda a comunidade, a instituição tem um modelo de clínica social: “As pessoas que podem pagar consultas a valores de mercado vêm cá e, assim, ajudam outras famílias que não conseguem pagar”, explica Patrícia Boura. Além de poderem usufruir de preços sociais, algumas famílias recebem bolsas que asseguram o seguimento das crianças.