ohn Lennon e Paul McCartney escreveram todas as músicas dos The Beatles antes dos 30 anos e Albert Einstein formulou a Teoria da Relatividade aos 26. Será que a criatividade diminui com a idade ou, pelo contrário, a experiência aprimora a capacidade de pensar de forma disruptiva?


Dulce Rosseló tinha 83 anos quando descobriu, pela primeira vez, o encanto da arte têxtil. Até então, a sua vida tinha sido dedicada à família, ao trabalho e às responsabilidades do dia a dia. A arte nunca fez parte do seu mundo – ou, pelo menos, assim acreditava. Tudo mudou quando, já reformada, visitou uma exposição de obras têxteis e pensou: “Isto é para mim.” A partir desse momento, mergulhou no universo criativo, frequentou cursos e iniciou o seu percurso artístico. Hoje, com 97 anos, já fez várias exposições e, quando lhe perguntam se a criatividade tem limite de idade, responde sem hesitar: “A minha idade nunca foi um impedimento. A criatividade está sempre pronta a manifestar-se.”
A criatividade não segue um único caminho, nem se manifesta de uma só forma. Enquanto Dulce descobriu a sua veia criativa numa fase mais avançada da vida, outros encontraram o seu génio ainda jovens. Picasso, por exemplo, revolucionou a arte moderna aos 26 anos com Les Demoiselles d’Avignon, uma obra que chocou e inspirou o mundo. Mozart compôs a sua primeira sinfonia aos 8 anos, e John Lennon e Paul McCartney compuseram todas as músicas dos Fab Four até aos 30 e 28 anos, respetivamente. Finalmente, Albert Einstein publicou a teoria da relatividade aos 26 anos, mudando para sempre a nossa visão sobre o universo.
Estas histórias de génios precoces sugerem que a juventude traz uma energia única, a liberdade para questionar o status quo e a capacidade de ver o mundo com outro olhar. Será mesmo assim? Será que a criatividade se manifesta de um modo mais intenso na juventude ou evolui, transforma-se e adapta-se às diferentes fases da vida?






A ciência tem uma palavra a dizer
A ideia de que a criatividade pertence apenas à juventude tem sido desmistificada pela ciência. Estudos recentes mostram que a capacidade de inovar pode alcançar diferentes picos ao longo da vida, dependendo de como a criatividade se manifesta. Uma investigação da Universidade Estadual de Ohio (Estados Unidos), que analisou vencedores do Prémio Nobel de Economia, revelou dois grandes momentos de auge criativo: um por volta dos 20 anos e outro mais próximo dos 50. Os investigadores descobriram que há dois perfis distintos de criadores: os “conceptuais”, que brilham no início da carreira ao desafiar convenções e propor ideias completamente novas, e os “experimentais”, que atingem o auge mais tarde, beneficiando da experiência acumulada ao longo das décadas.
Outra teoria que ajuda a compreender como a criatividade evolui ao longo da vida é a da inteligência fluida e cristalizada, proposta por Raymond Cattell. A inteligência fluida, associada à capacidade de resolver problemas novos e pensar de forma abstrata, tende a atingir o seu pico na juventude e a diminuir com a idade. Já a inteligência cristalizada, baseada no conhecimento e na experiência, continua a desenvolver-se e pode atingir o auge entre os 60 e 70 anos.
REVISTA MONTEPIO
A outra metade da minha vida
A força da juventude vs. o conhecimento da experiência
Se a juventude se destaca pela ousadia em desafiar convenções e explorar sem medo, a maturidade traz a capacidade de transformar experiências em novas formas de expressão. Guta Moura Guedes, curadora e gestora cultural, acredita que a criatividade não segue uma fórmula rígida. “É uma recombinação dinâmica, como num caleidoscópio”, explica. “É isso que torna o processo tão interessante.”
Para Guta, o que realmente muda com a idade são os recursos disponíveis para que a criatividade se manifeste. “O que uma criança pode criar e concretizar é muito diferente daquilo que um adulto de 30 anos pode fazer”, afirma. Além disso, a curadora defende que o desconhecimento de regras sociais e das consequências do que fazemos pode dar uma liberdade criativa única às crianças e jovens. “Essa capacidade de arriscar perde-se, inevitavelmente, com o passar dos anos. Ser-se criativo é uma coisa, produzir resultados através da criatividade, é outra”, conclui.
Por outro lado, Edite Amorim, fundadora da consultora Thinking Big, reflete sobre a ideia de que a juventude é automaticamente mais criativa, considerando-a um mito. “A experiência traz uma nova chispa criativa. A criatividade não é apenas sobre ter ideias, mas sobre implementá-las, e a experiência ajuda muito nisso. Vejo muitas pessoas mais velhas que se reinventam e encontram soluções criativas para problemas complexos”, afirma com convicção.
Mas se a criatividade pode permanecer viva ao longo do tempo, o que poderia ameaçá-la? Para Edite, o problema não está na idade, mas na forma como as pessoas encaram a vida. “Às vezes, as pessoas ficam mais céticas ou tristes com o tempo, e isso pode afetar a criatividade. É preciso manter a curiosidade e a vontade de questionar, sem nos deixarmos entristecer pela vida”, conclui.
“A capacidade de arriscar perde-se, inevitavelmente, com o passar dos anos. Ser-se criativo é uma coisa, produzir resultados através da criatividade, é outra”
Criatividade: um processo contínuo
No mundo da música, essa transformação da criatividade é evidente. Aos 57 anos, Olavo Bilac, vocalista dos Santos & Pecadores, reconhece que a irreverência dos primeiros anos teve um impacto profundo no seu processo criativo. “Até aos 30 anos criamos as canções da vida. Depois vêm as canções maduras. A inocência e o não pensar demasiado fazem com que a criatividade da juventude pareça mais intensa. Mas hoje tenho mais instrumentos e mais calma. Faço as coisas de outra forma.”
João Pedro Pais, que se mantém relevante na música há mais de 25 anos, corrobora esta ideia, mas com uma nuance importante: “Não é bem uma questão de ter mais criatividade. Se calhar, estamos menos preocupados. Por não termos essa responsabilidade, quando é o começo de tudo, as coisas às vezes são mais naturais”, admite o cantor. “Hoje escrevo de forma diferente. Acho que os meus textos estão melhores do que antigamente. Se fizesse agora a música Mentira, o texto teria de ser alterado”, confessa.
Mas a criatividade não se esgota na música. Seja nas artes, na ciência ou no humor, a experiência e o conhecimento acumulados ao longo dos anos desempenham um papel fundamental no processo criativo. Luís Pedro Nunes, jornalista e diretor do jornal satírico Inimigo Público, defende que a maturidade pode ser uma grande aliada da inovação. “Para mim, a criatividade tem necessariamente por base alguma experiência. Não se consegue criar a partir do nada. No meu trabalho, a criatividade depende da capacidade de subverter, criar analogias e reconverter algo que já tínhamos em nós.”
“A criatividade tem necessariamente por base alguma experiência. Não se consegue criar a partir do nada”
Momento “eureka!”: mito ou realidade?
A imagem do criador que tem uma epifania repentina, um momento “eureka” que muda tudo, é uma das narrativas mais populares sobre a criatividade. Mas será que é realmente assim que as grandes ideias surgem?
Na realidade, é raro o pensamento criativo surgir de forma espontânea. Roger Beaty, neurocientista na Universidade de Harvard, explica que a criatividade não é um instante mágico, mas o resultado de um processo contínuo que envolve geração, avaliação e refinamento de ideias. O seu estudo demonstrou que as pessoas mais criativas conseguem ativar simultaneamente três redes neurais no cérebro – algo que exige treino e repetição.
No mundo da arte e da cultura, muitos criadores confirmam que a criatividade exige mais esforço do que inspiração súbita. Luís Pedro Nunes desmistifica esta ideia: “Se alguém imagina que a criatividade é algo espontâneo, que surge do nada, como um momento ‘eureka’, está enganado. Para mim, a criatividade tem necessariamente por base alguma experiência. Não se consegue criar a partir do nada”, diz o cronista.
A psicóloga Edite Amorim reforça que a experiência pode ser mais valiosa do que a rapidez do pensamento. “A criatividade não é apenas sobre ter ideias – é sobre implementá-las. E a experiência ajuda muito nisso. Vejo muitas pessoas mais velhas a reinventarem-se e a encontrarem soluções criativas para problemas complexos.”
Esta perspetiva contraria a crença de que a juventude é automaticamente mais criativa. Guta Moura Guedes acrescenta que, embora existam fórmulas para estimular um pensamento mais inovador, a criatividade não se resume a um momento de iluminação.

Rotina criativa: para que te quero?
Se, por um lado, a criatividade pode surgir de momentos inesperados, por outro, muitos criadores defendem que o verdadeiro segredo está na prática e na repetição. Criar de um modo consistente exige rotinas, disciplina e um espaço mental propício à experimentação. Olavo Bilac descreve a sua abordagem criativa como um processo contínuo: “Como diz um amigo meu, produtor, todos os dias temos que ir ao mar para pescar. Há dias em que pescamos, outros em que não. Mas a rotina é essencial para a criatividade florescer.” Para João Pedro Pais, a criatividade surge quando nos alimentamos de referências e experiências, algo que se constrói diariamente.
Já Luís Pedro Nunes destaca a importância de criar espaços de pausa para manter a criatividade ativa. “Estou sempre a consumir informação, mas o cérebro não consegue processar tudo ao mesmo tempo. Por isso, faço meditação e desligo quando preciso. A criatividade também exige silêncio”, conclui o cronista.
Como manter a criatividade ao longo dos anos?
Há quem diga que manter a criatividade ativa exige um equilíbrio entre a curiosidade, o estímulo e a prática constante. E sim, muita rotina. Para manter a inspiração aguçada ao longo do tempo, vários criadores e especialistas partilham conselhos valiosos sobre como manter a mente aberta e produtiva. Conheça as sugestões de Guta Moura Guedes, João Pedro Pais, Olavo Bilac, Luís Pedro Nunes e Edite Amorim.
Guta Moura Guedes, curadora: “Temos de ser permanentemente curiosos. Ouvir, mas manter o sentido crítico. Cultivar a inquietação. Não dar o dado como adquirido. Estimular o aparelho sensorial, aprender a usar o corpo como recetor de estímulos criativos. Sair da zona de conforto, discutir, perguntar. Procurar a diversidade. Meditar, respirar bem. Estar sozinho. Duvidar de si próprio. Ouvir música. Fazer ginástica mental. Estar em contacto com a natureza, com algo maior que nós. Ou nada disto. A criatividade é um fenómeno individual, pessoal, com a idade temos obrigação de saber como a manter. Requer trabalho, atenção, foco. Não conheço um criador verdadeiramente produtivo e interessante que não trabalhe muito, a tempo inteiro, sem descanso.”
João Pedro Pais, músico: “Envolvo-me na leitura para conseguir verbalizar melhor, poder escrever melhor. Influencio-me com os outros. Estou sempre em movimento, não invento nada, dou continuidade àquilo que me é dado a ver e a ouvir.”
Olavo Bilac, músico: “Observar o que se passa à nossa volta. Somos contadores de histórias. Os amores, as contradições que temos na vida, são geracionais, do pai e do filho, e estas são as histórias de vida que todos vivemos. E quanto mais bem contadas, mais depressa chegam às pessoas.”
Luís Pedro Nunes, jornalista: “Às vezes, é importante parar. Desligar tudo. Colocar o telemóvel em silêncio, ouvir música e focar-se na tarefa. Não há multitasking. A escrita não permite isso. É muito ritualista. Sento-me e escrevo. Não faço mais nada. E tem que sair.”
Edite Amorim, psicóloga: “A criatividade começa com a curiosidade, a vontade de aprender e descobrir, independentemente da idade. Mas essa curiosidade precisa de ação: sair e ir à procura, explorar novas experiências, visitar exposições, assistir a concertos, mergulhar no desconhecido. E, por fim, integrar o outro, inspirando-se em diferentes perspetivas – sejam artistas do passado, criadores contemporâneos ou até pessoas de áreas completamente distintas. Criar é conectar, experimentar e manter-se aberto ao mundo.”