m Portugal, a família tradicional está a mudar. Há quem não queira ter filhos e quem prefira morar sozinho. Há famílias com quatro gerações sob o mesmo teto e jovens que, não tendo laços de sangue, partilham o lar. As novas famílias são a porta de entrada para uma sociedade cada vez mais diversa e multifacetada. O ponto em comum? A casa onde todos moram.
A mãe, o pai e os filhos. Há 30 anos, era esta a fotografia familiar na mesa de cabeceira de quase metade das famílias portuguesas (45,5%). Os agregados monoparentais eram uma minoria (6,3%) e os casais sem filhos correspondiam a um quinto do total (20,1%), de acordo com a Pordata.
Os retratos familiares são agora mais diversos. As estatísticas revelam que há menos casais com filhos (33,5%), mais famílias monoparentais (10,4%), como a de Tânia, e mais agregados sem filhos (24,5%), como Paula e o marido. A evolução da legislação nacional permite também, desde 2010, que casais do mesmo sexo se casem, como Raquel e Margarida.
Há mais novidades. As despesas com a casa e também com a saúde, o aumento da esperança média de vida, além de uma solidariedade intergeracional, fomentam as famílias com avós, pais e netos debaixo do mesmo teto, como na casa de Rodrigo. E há uma tendência crescente para a existência de “famílias” por conveniência, como Pedro e Patrícia, que se juntam debaixo do mesmo teto para partilharem despesas e tentarem sobreviver num mercado da habitação com preços cada vez mais altos. Há ainda pessoas, como Joana, que preferem viver sozinhas e gerir o quotidiano autonomamente. São assim as famílias portuguesas contemporâneas.
REVISTA MONTEPIO
Avós e netos: o que se aprende com uma geração de intervalo
Dividir casa com desconhecidos
Patrícia Cachapa, de 31 anos, e Pedro Oliveira, de 25, não se conheciam quando começaram a partilhar, com outros jovens, um apartamento no centro de Lisboa. “Moramos num T3, mas como era incomportável sermos apenas três a pagar a renda, decidimos ficar sem sala para podermos contar com o contributo de mais uma pessoa”, conta a jovem advogada. Por mês, cada inquilino paga 350 euros. “Neste momento, estamos confinados às quatro paredes do quarto”, afirma.
Viver numa casa com desconhecidos implica estabelecer regras para a gestão do quotidiano. Patrícia, Pedro e os outros dois jovens que ali moram dividem os armários da cozinha, as prateleiras do frigorífico, e usam o fogão à vez. Também têm de se revezar para tomar banho. Com horários de trabalho distintos, veem-se poucas vezes e raramente jantam juntos. “Levamos vidas bastante separadas”, diz Pedro Oliveira, contando que, nos primeiros tempos, sentiu dificuldade em estar naquele espaço. “Quando morava em Coimbra — fiz lá a licenciatura em Jornalismo —, tinha um estúdio só para mim. Gostava de continuar numa situação semelhante, mas com os valores das rendas em Lisboa não é possível.” Um ano e nove meses depois de se ter mudado, o jovem, que neste momento está a trabalhar na área de apoio ao cliente, conta que se já adaptou. “Sou de relação fácil e, como detesto confusões, tem corrido bem.”
Chegar a adulto e não conseguir ter casa própria não é fácil. A psicóloga Catarina Mexia explica que “aceitar a realidade é o primeiro passo para lidar com a frustração”. Quando se partilha um espaço com os outros, é muito importante comunicar “de forma assertiva”, voltada para “uma gestão e prevenção do conflito”. Neste processo, explica a terapeuta, deve começar-se, desde logo, a fazer “um plano poupança, reformulando objetivos, cumprindo um plano de longo prazo com disciplina e consistência” que permita mudar essa realidade. Até lá, é necessário ajustar-se, como fez Patrícia Cachapa.
Apesar dos esforços, a advogada assume que, de vez em quando, se questiona sobre a sua situação. “Trabalho há vários anos e continuo sem conseguir pagar um teto sozinha”, afirma. Patrícia está nesta casa há três anos, depois de ter sido despejada do apartamento onde vivia com outras pessoas. “A senhoria deu-nos um pré-aviso de 30 dias. Foi muito difícil arranjar uma alternativa. Só consegui encontrar este quarto porque tinha amigos que aqui moravam e que, entretanto, emigraram.” E acrescenta: “Os jovens estão cada vez mais desprotegidos em Portugal e não tenho perspetiva de que a situação se possa alterar em breve.”
Uma casa só para ela
Joana Barbosa vive num T0 no centro de Lisboa. Há dois anos conseguiu ter um espaço para si, depois de vários anos a partilhar apartamento com estranhos. “Nem queria acreditar quando fiquei com esta casa”, conta a consultora de 33 anos, explicando que, depois de muito procurar, encontrou finalmente uma renda com valores acessíveis. “Sempre quis morar perto do trabalho para ter mais qualidade de vida”, diz. “Atendendo à atual crise na habitação, sinto-me uma privilegiada por estar nesta situação.”
Nos primeiros tempos, Joana Barbosa experimentou uma sensação de vazio quando chegava a casa, ao fim do dia, e não encontrava ninguém. “Aos poucos, fui-me habituando e hoje gosto bastante. Tenho uma vida muito preenchida e não me sinto sozinha.” Entre o emprego, o ginásio, as visitas à família e as tarefas domésticas não lhe sobra muito tempo. “Só ao fim de semana consigo usufruir da cidade. Vou a museus, ao teatro e a concertos. Se não tiver companhia, vou na mesma”, diz, contando que o apartamento é muito pequeno (tem uma kitchenette e uma sala que é também quarto) e, por isso, raramente recebe visitas.
Apesar de sublinhar que tem sido uma experiência feliz, Joana Barbosa confessa que o mais difícil foi estar sozinha nos momentos em que esteve doente. “Felizmente, nunca tive nada grave, mas é duro ter febre, por exemplo, e não ter ninguém ao lado. Ao mesmo tempo, sei que isso me torna mais resiliente.”
Antes de se mudar para este T0, a consultora partilhou apartamento em Lisboa por duas vezes. Numa delas, morou num quarto interior sem luz natural. Na outra, dividiu o espaço com mais sete pessoas. Antes, ainda, viveu num hostel. “Sempre tive o desejo de sair de casa dos meus pais e ser independente, mesmo que isso significasse viver em piores condições”, conta. A opção não tem a ver com a relação com a família, mas com o desejo de autonomia. “Aproveito muito a zona onde moro. Faço tudo a pé e tenho qualidade de vida.”
Sozinha com três filhos, sacrifícios e muito amor
Tânia Silva está a criar os três filhos, de 18, 13 e 5 anos, sozinha. “Custa a entranhar, mas a gente faz isto com uma perna às costas”, diz para aliviar o peso de ter de “conseguir conjugar a atividade profissional com as crianças, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano”. Tal como na maioria dos 579 971 núcleos familiares monoparentais em Portugal, é a mulher quem assume o papel de educar e prover todas as necessidades dos filhos.
Para conseguir estar mais presente, Tânia deixou o emprego fixo como auxiliar de ação médica num grande hospital de Lisboa. O tempo de deslocação desde a Margem Sul, onde vive, era muito longo e não tinha controlo sobre os seus turnos, o que a obrigava a pagar a amas para ficarem com as crianças. “As despesas eram superiores ao ordenado. E o desgaste psicológico estava a ser muito”, confessa Tânia, atualmente com 39 anos. Hoje, faz limpezas domésticas. “Às vezes o salário é complicado, mas dá para fazer os meus horários, ir levá-los e buscá-los, ter os fins de semana com eles”, conta.
Há uns meses, a senhoria pediu-lhe para deixar a casa onde estava porque a tinha vendido. “São aqueles dias em que parece que caímos num buraco e nos puxam o tapete”, descreve. Durante três meses, viveu com os filhos no sótão de uns amigos até conseguir encontrar um apartamento com dois quartos. Optou por deixar a mais velha num quarto sozinha e ela e os mais novos estão no outro.
Comparando os preços que foi encontrando, considera ter tido alguma sorte: paga 450 euros, com luz e água incluídos. A média está nos 679 euros, de acordo com um barómetro divulgado em novembro de 2023 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Seis em cada dez pessoas inquiridas para este estudo disseram ter dificuldade em saldar as despesas com a habitação. “Quando analisamos os dados disponíveis no Eurostat, percebemos que o preço médio da habitação, desde 2015, aumentou mais em Portugal do que na média e na generalidade dos países europeus (e consideravelmente mais do que aumentaram os rendimentos do trabalho na mesma altura)”, explica um dos autores do barómetro, João Pereira dos Santos, professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
Na alimentação Tânia faz alguma gestão, mas quase não dá para comprar peixe. “Volta e meia ainda levo medalhões de pescada, bacalhau desfiado ou atum. E, mesmo na carne, recorro muitas vezes às etiquetas laranja ou rosa”, que indicam o aproximar do fim da validade. “Muitas pessoas devem passar fome”, salienta. Ela e os filhos, afirma, levam uma vida sem “luxos”. Em vez de irem ao cinema, frequentam parques ou fazem muitas atividades lúdicas em casa. As roupas são herdadas pelos mais novos ou dadas por amigos e conhecidos. Quando é necessário, as mais velhas tomam conta do caçula, de 5 anos. O essencial, resume Tânia, é que tem “uma família com muito amor e muita entreajuda”.
A geração sanduíche
Quando Rodrigo Maia da Silva o conheceu, já o sogro tinha sofrido um AVC. “Ao longo dos anos foi ficando mais debilitado”, conta, descrevendo como era necessário fazer a higiene, ajudá-lo com a alimentação. À noite, Rodrigo e a mulher faziam turnos para mudar a posição de modo a evitar o aparecimento de feridas. Era necessário dar ao doente uma atenção quase 24 sobre sete, que não era possível para um jovem casal em que ambos tinham uma atividade profissional. A mulher de Rodrigo decidiu, então, despedir-se para ficar a tomar conta do pai. Em simultâneo, cuidava da sua bebé ainda pequena.
Foi uma fase particularmente dura. “É extremamente violento. A privação de sono é terrível. Não dormimos, não conseguimos fazer nada durante o dia. Irritamo-nos porque não conseguimos. Não dormimos porque estamos cansados, estamos tão cansados que não dormimos.” Rodrigo escreveu recentemente o livro Sou Cuidador. E agora?, que resulta desta sua experiência.
Rodrigo e a mulher perceberam que era necessário outro tipo de cuidados especializados – fisioterapia, enfermagem – para os quais nenhum deles tinha formação. A única empresa que encontraram na Ilha Terceira, onde vivem, não fornecia todos os serviços de que necessitavam. Assim, da adversidade, nasceu a sua empresa de cuidados ao domicílio, que inclui até um médico que, de dois em dois meses, faz consultas em casa a todas as pessoas que acompanham.
O casal criou uma verdadeira rede de apoio social: com a emigração que se regista nos Açores, os filhos, que muitas vezes estão em continentes distantes, contratam-nos para acompanharem os pais. “Vamos a casas onde o idoso está sozinho, se não for o apoio de um vizinho, de um amigo ou de uma empresa”, relata Rodrigo Maia da Silva.
Agora já com duas filhas – a mais velha com 6 anos e uma bebé com poucos meses –, Rodrigo continua a viver com a sogra, que, “embora tenha 76 anos, é uma pessoa independente, faz as suas coisas”. E os pais também residem muito próximo. Mas prevê já o futuro: “Não vai demorar muitos anos para que, se eu estiver vivo, tenha de lidar outra vez com a geração sanduíche.” Ainda assim, acredita que a ligação familiar que vem criando pode fazer alguma diferença: “Lidar com crianças prolonga os anos de vida dos idosos.”
“A privação de sono é terrível. Não dormimos, não conseguimos fazer nada durante o dia. Irritamo-nos porque não conseguimos”
A mãe, a mamã e os gémeos
Tinham ideais de família muito diferentes quando se conheceram e começaram a namorar. Raquel queria casar e ter filhos, Margarida não. “A coisa começou a ficar séria e lá a convenci a ter filhos”, conta Raquel Margato, de 33 anos, que trabalha como real time analyst. Pelo meio desta aventura que, desde outubro de 2022, com o nascimento dos gémeos, Mateus e Gabriel, se escreve a quatro, Margarida teve uma oportunidade de trabalho na sua área de formação — anatomia patológica — no Luxemburgo. Com a situação económica a deteriorar-se em Portugal, Raquel, que tem formação na área da educação, decidiu acompanhá-la. “Estávamos juntas há ano e meio e eu não queria abdicar da nossa relação”, conta. Ainda assim, demorou oito meses a encontrar trabalho. E não se deu particularmente bem no país, por isso, quando chegou o momento de serem mães, voltaram a Portugal.
O regresso não compensou em termos financeiros. “Mas não queria engravidar lá, não confiava nem no sistema de saúde luxemburguês, nem no sistema de educação”, conta Raquel, que acrescenta, como fator que ajudou à decisão, a importância do apoio da família. “Queria que eles crescessem com avós, tios. Lá não tínhamos isso.” Também não tinham encontrado tolerância: “Estamos num país que nos aceita como família. Temos os mesmos direitos porque outras famílias foram à frente e se assumiram.”
Com a existência de listas de espera no Serviço Nacional de Saúde, usaram parte do pé-de-meia – entre 5 000 e 6 000 euros – para recorrer ao privado, onde conseguiram engravidar à primeira tentativa graças ao método ROPA, de maternidade partilhada: “A Margarida deu os óvulos e eu carreguei a gravidez”, explica Raquel.
Para ajudar outras famílias homoparentais, Raquel criou, no Instagram, a página 2 Mamãs para 2 Bebés. Neste espaço, escreve sobre as “peripécias de mamãs de primeira viagem”. Os rostos de Gabriel e Mateus, agora com um ano, nunca surgem, para os proteger, mas é possível acompanhar as suas tropelias, os primeiros passos. “O objetivo da página é ser um espaço positivo. Mostrar a normalidade da nossa família”, explica Raquel, para quem ainda existe “um bocadinho de culpa” ao antever que os seus filhos vão ser pioneiros. “Vão ouvir na escola ‘Quem é o teu pai?’ e vão ter de lidar com outras coisas para que, daqui a umas gerações, outras pessoas não tenham de o fazer.” No infantário onde os rapazes estão, que é privado — o que pesa muito no rendimento mensal —, já houve outra família homoparental. “Tranquilizou-me”, diz Raquel. “Sabem que eu sou a mamã e a Margarida é a mãe”, e é assim que as tratam.
Sem filhos por opção
Nos primeiros tempos de namoro, Paula Braga fez questão de dizer ao companheiro que não pretendia ser mãe. “Não queria empatá-lo e, por isso, sempre esclareci esta questão”, recorda. Ele aceitou a escolha e nunca a pressionou a mudar de ideias. Quando se casaram, ainda jovens, sentiram, durante algum tempo, a pressão da família para que tivessem um bebé. “A dada altura, cheguei a dizer às pessoas que não tinha filhos por questões de saúde, para que me deixassem em paz. Resultou: as minhas tias deixaram de me chatear”, conta a assistente comercial, que esclarece que há 26 anos, quando oficializou a relação, “não era entendido como opção de vida não ter crianças”.
Ao contrário de muitas amigas, que desde a adolescência sonhavam com os nomes dos filhos, Paula Braga sempre comunicou aos pais a sua decisão. “Acho que nunca me entenderam bem. O certo é que nunca tive o apelo da maternidade. Nunca me vi no papel de reprodutora”, frisa, dizendo que “as pessoas que não querem ter filhos não têm de se sentir inferiores”.
“Cresci sem ter uma excelente relação com o meu pai e isso pode ter contribuído. Por outro lado, sempre tive uma profissão muito absorvente e, para mim, era preocupante ter filhos que fossem criados por outras pessoas.” Ainda assim, sempre gostou de crianças. “Costumo dizer que sou uma ótima tia. Tenho três sobrinhos, além de vários afilhados.”
Com 52 anos, Paula Braga admite que, embora esse não tenha sido o motivo para não ter descendência, acaba por conseguir ter mais tempo livre com o marido. De vez em quando também gosta de viajar sozinha. “Às vezes penso que vou passar a velhice só, mas nunca achei que a solução para que isso não acontecesse fosse ser mãe. Acho que os pais não podem pensar que os filhos vão ser os seus cuidadores”, refere. Nos últimos tempos, atendendo à instabilidade económica e às guerras, também se tem interrogado sobre como se sentirão os pais neste momento. “Nestas alturas, agradeço não ter filhos. Que mundo vamos deixar à próxima geração?”