Quando o digital nos torna analógicos

Quando o digital nos torna analógicos
7 minutos de leitura
Ilustração de Sónia Garcia | Fotografia de Maria João Gala e Rodrigo Cabrita
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azer malha numa comunidade de milhares. Descobrir novos livros graças aos clubes de leitura nas redes sociais. Inspirar-se para fazer atividades artísticas com as crianças num museu. Ou conseguir cantar com uma estrela nacional. No equilíbrio entre o online e o offline, conheça os projetos digitais que estão a afastar as pessoas dos ecrãs.

Mariana Nunes devorou o primeiro volume de Caraval, uma história de fantasia para jovens adultos, durante um dos confinamentos forçados pela pandemia. O livro tinha já sido editado em 2017 mas, apesar de o considerar “muito bom”, ficou surpreendida por não encontrar traduzidos os volumes seguintes da trilogia de mistério e aventura escrita por Stephanie Garber. Espantada, enviou um e-mail à editora: “O que preciso fazer para provar que há leitores que querem ler [esta saga em português]? Se esgotarmos [o primeiro volume], vão perceber que o livro merece?”

A jovem algarvia, que estuda em Aveiro, passou então das palavras aos atos. Criou uma petição online, colocou o livro no seu clube de leitura e deixou alertas em grupos no Facebook. Os jovens que a seguiam convenceram os pais a também assinar o documento. “Em quatro ou cinco dias tínhamos mais de mil assinaturas”, conta Mariana, hoje com 22 anos. “O livro acabou por esgotar.”

Face ao sucesso quase instantâneo nas redes sociais, a editora decidiu comprar os direitos para traduzir os restantes volumes. Mas foi mais longe. Desde então, mantém um formulário online com os livros que as pessoas mais querem ler. “As editoras estão a ouvir o público”, garante Mariana.

A jovem, que se define como bookinfluencer, faz parte de uma comunidade que divulga livros nas redes sociais: Instagram, Facebook, Youtube e TikTok. A sua conta no Instagram — Chronicles of Mariana — tem mais de 59 mil seguidores que acompanham as suas propostas literárias e são um tubo de ensaio para “os temas que interessam aos jovens”, explica. Boa parte das recomendações são livros que Mariana lê em inglês, por ainda não estarem traduzidos para português. Mas a sua influência é tal que, através de parcerias com grandes grupos editoriais portugueses, consegue ter acesso às novidades literárias. “[Leio] muitos dos livros antes mesmo destes chegarem às livrarias. Assim, o livro já é muito falado antes da venda”, explica Mariana, que está a fazer o Mestrado em Estudos Editoriais, na Universidade de Aveiro, e tem como objetivo trabalhar numa editora.

Um artista em casa, no museu…

No equilíbrio entre o online e o offline, Mariana Nunes está a desenvolver um projeto digital de sucesso que, ironicamente, está a afastar os jovens da sua geração dos ecrãs. Mas há muitos outros exemplos desta tendência, em áreas como a cozinha e a gastronomia, a jardinagem e o DIY (faça você mesmo), ou até o artesanato.

Ana Ribeiro, por exemplo, criou um projeto educativo dirigido a crianças entre os 3 e os dez anos. O projeto, denominado Um Artista aí em Casa, é seguido por 27 mil pessoas no Instagram, mas um dos objetivos é afastar as crianças dos telemóveis e dos tablets. Todos os meses, Ana Ribeiro elege um artista em destaque e envia kits com atividades para casa das pessoas que se inscreveram na iniciativa. As atividades criativas são pensadas para toda a família, e não apenas para os mais jovens.

“Não quero as crianças a fazerem [as atividades] sozinhas. Os trabalhos dos kits são para partilhar, para aprender em conjunto”, explica a professora de Artes Visuais, de 43 anos. “O projeto “Um Artista aí em Casa” é filho dos confinamentos, altura em que tudo tinha de ser digital. Ainda assim, foi possível criar algo que faz as famílias desligarem o telemóvel e partilharem fisicamente atividades manuais e mentais”, assegura a mentora.

Os pais que lhe escrevem contam que os mais jovens, mesmo quando “não gostavam muito de áreas artísticas, interessam-se pelas atividades”. E as visitas que faz a exposições com os dois filhos, Amélia e Ari — que vão sempre acompanhados de cadernos e materiais de pintura, para se expressarem junto às obras que mais os inspiram —, têm levado outras famílias a perderem o receio de invadir o museu com as crianças. “Isso deixa-me muito feliz pois é, realmente, tornar a arte acessível a qualquer pessoa”, refere.

Ana Ribeiro considera que “o mundo digital não é um demónio, mas um ótimo meio de comunicação para adultos”. O problema é quando se transforma no único meio na vida de qualquer pessoa. “Este projeto mostra que estes dois mundos são complementares e que um pode potenciar o outro, em vez de o aniquilar”, explica.

“Foi possível criar algo que faz as famílias desligarem o telemóvel e partilharem fisicamente atividades manuais e mentais”

Ana Ribeiro, designer e mentora do projeto “Um artista aí em casa”

Cantar num palco mítico

Rodrigo Oliveira e Ana Leonor Ramos estão a aproveitar as redes sociais para potenciarem os seus sonhos na música. Recentemente, ambos venceram o concurso #InstaStage, realizado pelo Montepio Associação Mutualista (MAM), o que lhes permitiu subirem ao palco e cantar com Fernando Daniel nos coliseus de Lisboa e do Porto, durante os espetáculos de comemoração dos 183 anos da Associação.

Rodrigo e Ana não são propriamente novatos na arte de cantar para os outros: ambos participaram em edições do formato televisivo The Voice, transmitido pela RTP. Ainda assim, o Coliseu foi a sala fechada onde atuaram para mais pessoas. Apesar do nervosismo antes da subida ao palco, aproveitaram o momento. “Libertei-me mais e criei um canal no Youtube, onde o principal objetivo é mostrar às pessoas que acredito em mim e que tenho talento”, conta Ana Leonor, de 17 anos, que fez parte da escolaridade obrigatória no ensino articulado da música. Esta experiência inspirou-a também para, em conjunto com os seus dois melhores amigos, se inscrever num projeto que leva música aos idosos.

Já Rodrigo, que fez dupla com Fernando Daniel no concerto de Lisboa, frequenta escolas de música desde os 8 anos. No Instagram, vai publicando mensalmente um novo vídeo ao piano – já lá colocara, até, a sua versão de Prometo, de Fernando Daniel. “Quero levar a música para a vida”, diz Rodrigo, de 14 anos, que tem recebido contactos de fãs de Portugal, Suíça, Brasil, África e até das Filipinas. “Por enquanto, as redes sociais têm como principal função conversar com as pessoas que me seguem. É prático”, refere. E também, graças ao #InstaStage, permitiram-lhe subir a um dos mais míticos palcos nacionais e cantar para mais de 4 000 pessoas.

REVISTA MONTEPIO

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Recuperar a tradição

Noutros tempos, as vizinhas juntavam-se para tricotar. O projeto de Filipa Carneiro cumpre o mesmo objetivo mas a outra escala territorial, tendo já juntado 3 800 pessoas a montar malhas e a tricotar a mesma peça em simultâneo. No seu perfil de Instagram, seguido por mais de 13 mil pessoas, há desafios e projetos em comum.

Aos 42 anos, Filipa Carneiro entende que este movimento de regresso às tradições das mães e avós é uma resposta ao ritmo da vida atual: “As pessoas sentem que precisam de outro ritmo. As malhas só se tecem uma de cada vez, não há forma de acelerar o processo. Obriga-nos a focarmo-nos no momento, a abrandar. Antes da moda do mindfulness, já praticávamos isto com a malha ou o crochet.”

A vida de Filipa mudou em 2010 com a crise do setor da construção, onde trabalhava como engenheira civil. Desempregada, passava cada vez mais tempo a tricotar. “O hobby começou a tomar conta do meu dia, as coisas foram evoluindo e criei o canal no YouTube.”

O objetivo inicial era valorizar “o património incrível” que existe em Portugal. “Só se tricota com o fio à volta do pescoço em Portugal, na Grécia e na Turquia. A isto chama-se o portuguese style knitting. Mas durante algum tempo envergonhávamo-nos desta tradição. As alunas mais velhas, inclusive, contam que as obrigavam a tricotar com o fio na mão”, frisa.

Longe vão os tempos em que as revistas de lavores só ensinavam através de técnicas estrangeiras, à maneira inglesa ou alemã, mas ainda hoje é improvável encontrar, nos tutoriais do YouTube, vídeos a explicar o tricotar à portuguesa. Filipa encontrou um nicho e seguiu o instinto. Começou a publicar os seus vídeos no canal Nionoi e alargou o projeto a outras redes, como Facebook (onde vai criando grupos, com o nome Tricotando Juntos, para cada estação do ano), e o Instagram. No Youtube, o videocast Knit for a Happier World já ultrapassou as 100 emissões.

“O projeto foi crescendo de uma forma que me surpreendeu”, assume Filipa, que se dedica agora a tempo inteiro às malhas. Dá aulas em algumas lojas de Lisboa e faz workshops online. Também ensina o portuguese style knitting em festivais internacionais. Em 2017, quando publicou um desafio para, em conjunto, fazerem um Xaile de Santo António que recuperava as tradicionais rendas por músicas, uma outra técnica portuguesa praticamente desaparecida, o sucesso foi tão grande que a fábrica dos fios ficou sem stock de algumas cores.

Apesar de muitos projetos serem apenas online, já foi possível “desvirtualizar” e marcar alguns encontros. Graças ao Nionoi, diz Filipa Carneiro, “há uma comunidade e as pessoas nunca se sentem sozinhas, fechadas em casa a tricotar”. A sua própria vida também mudou graças ao digital. Mas os melhores momentos, esses são sempre passados offline.

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