O amor acontece: histórias de amizade depois dos 80 anos

O amor acontece: histórias de amizade depois dos 80 anos
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Fotografia de Maria João Gala e Rodrigo Cabrita
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riar laços de amizade nas últimas décadas de vida contribui para a saúde e o bem-estar. Conheça as histórias de quem conheceu e se aproximou de outras pessoas bem depois de estar aposentado – e de como a sua vida mudou para melhor depois disso.

Na primeira vez que Zulmira Pinho, de 83 anos, e Cidália Nunes, de 72, partilharam quarto na Residência Montepio de Albergaria-a-Velha, ficaram acordadas até às duas da manhã. “Estivemos na conversa. Temos sempre tantas coisas para contar uma à outra”, confessa Zulmira, divertida. As duas tornaram-se amigas pouco depois de terem chegado à residência, para onde se mudaram – temporariamente – para recuperarem de acidentes: Cidália fraturou a perna ao sair de um automóvel, e Zulmira o pé e a coluna numa queda em casa. Trocaram as primeiras palavras no refeitório, quando o acaso as juntou na mesma mesa. “Achei-a logo muito educada. É uma pessoa que está sempre a rir”, recorda Zulmira que, ao longo da vida, trabalhou na agricultura e na indústria, tendo sido também doméstica.

Além de falarem sobre a vida de cada uma, de recordarem histórias antigas, de fazerem bolos e bolachas e de rezarem juntas, encontram-se nas sessões de fisioterapia. “Há outro utente, o senhor Carlos, que gosta de se juntar a nós. É muito boa pessoa”, conta Cidália, acrescentando que quando voltar para casa, para mais perto dos três filhos, vai continuar a telefonar à amiga. Esta antiga vendedora ambulante reconhece a importância que as relações sociais têm no seu bem-estar. “Nesta fase em que já não trabalhamos é muito importante ter amigos, alguém com quem conversar. Isso ajuda muito a vivermos mais alegres.”

Como explica Filipa Luz, presidente da Associação Nacional de Gerontólogos, as relações sociais são “fatores protetores” da capacidade funcional e do bem-estar. “São de tal modo importantes que a Organização Mundial de Saúde (OMS) as inclui como uma das premissas para um envelhecimento saudável: estabelecer e manter relações é uma das metas para sermos saudáveis à medida que envelhecemos”, diz a especialista. Apesar dos benefícios das relações sociais, há a tendência para que, com o tempo, o número de amigos vá diminuindo. “Não é uma escolha, mas algo muito provável que acontecerá à medida que envelhecemos”, afirma, explicando que isso se deve a fatores como a personalidade, a estrutura familiar e o contexto de cada indivíduo.

Segundo a investigadora Maria João Guardado Moreira, fazer novos amigos nas últimas décadas de vida é também uma maneira de criar uma rede de apoio quando a família não está presente. “Nas regiões do interior do país é comum assistir-se a esse tipo de situações”, recorda a professora, que coordena o mestrado em Gerontologia Social no Instituto Politécnico de Castelo Branco e a Age.Comm, a Unidade de Investigação Interdisciplinar – Comunidades Envelhecidas Funcionais. De acordo com a académica, a manutenção de contactos sociais é “fundamental” em termos de qualidade de vida, mas também para o “aumento da atividade cognitiva”, uma vez que funciona como um fator de prevenção.

Uma amizade que deu origem a uma tertúlia

Tal como noutras faixas etárias, além da própria relação também as amizades que nascem aos 70, 80 ou 90 anos podem dar origem a novos projetos. É o que acontece na Residência Montepio da Parede, no concelho de Cascais. Todas as semanas, Isabel Goulão, Maria Helena Teixeira, Margarida Pinheiro, Isabel Gomes Mota, Ângela Carapito e Eduardo Lopes reúnem-se numa sala para conversar. Juntam-se numa tertúlia – fizeram questão de batizar assim a iniciativa – e falam sobre temas da atualidade, como o conflito na Faixa de Gaza ou a Guerra na Ucrânia, e abordam questões associadas à instituição. “Por vezes, sugerimos à diretora da residência algumas melhorias. É o nosso contributo”, afirma Margarida Pinheiro, de 82 anos, a última a integrar o grupo.

A antiga livreira entrou na instituição em dezembro de 2022, na sequência de algumas sequelas causadas pela Covid-19 que a levaram a necessitar de cuidados extra. “Ao longo da vida habituei-me a pensar e a estudar os assuntos, e aqui encontrei pessoas com as mesmas preocupações”, diz, contando que as primeiras amigas que fez foram Isabel Goulão e Isabel Gomes Mota. Partilhavam a mesa às refeições e, aos poucos, foram-se aproximando.

Com seis elementos, com idades entre os 78 e os 93 anos, o grupo aproveita as tertúlias para abordar alguns aspetos da vida de cada um. “Ninguém se coíbe de falar do que lhe apetece. É um sítio onde podemos ‘despejar o saco’”, diz Isabel Goulão, antiga professora que vive na Residência Montepio há uma década. Já Maria Helena Teixeira sublinha o quanto tem recebido com estas sessões e com a amizade entretanto gerada. “Emocionalmente é muito importante”, refere, acrescentando que depois de ter sofrido uma depressão, na sequência da morte do marido, decidiu permanecer na residência para não estar sozinha.

Eduardo Lopes, de 93 anos, é o único homem que integra o grupo. Descobriu a tertúlia por intermédio de Ângela Carapito, que na altura já se reunia com as amigas para conversar. “Nos primeiros tempos aqui passeava muito no terraço. E foi aí que comecei a conversar com Ângela. Quando ela fez anos, convidou-me para a festa. Foi assim que conheci as outras senhoras”, conta. “Um mês depois, fui eu que comemorei o aniversário. Chamei a Ângela e disse-lhe para levar também as amigas”, recorda, sublinhando a importância da sociabilização para a sua qualidade de vida. “Há muitas pessoas cujos males se agravam por estarem sozinhas.” Para o reformado, que fez carreira na Kodak, multinacional na área da fotografia, e que ocupa hoje parte do seu tempo com a leitura e a escrita, os homens da sua idade isolam-se mais. “As mulheres são mais gregárias. Como sempre convivi com muita gente, adaptei-me bem ao grupo.”

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Amizade entre técnicos e idosos

Nas residências para seniores do Montepio Associação Mutualista a amizade também nasce entre utentes e funcionários. Foi o que aconteceu com Zulmira Pinho, Cidália Nunes e a equipa da Residência Montepio de Albergaria-a-Velha. “[As funcionárias] são muito queridas. Fiz anos há pouco tempo e fizeram-me uma festa”, recorda Zulmira, que tem dois filhos a morar fora do país e, por isso, está mais sozinha. Daniela Mendes, animadora sociocultural desta residência, explica que a equipa não se limita a cuidar dos idosos. “Acabam por ser a nossa segunda família”, afirma. E diz, emocionada: “Gera-se uma empatia. Muitas pessoas continuam a telefonar-nos meses depois de terem saído. São gestos que nos sensibilizam e nos enchem a alma.”

Quem está bem, não muda

Aos 88 anos, Ângela Carapito, nascida em Espanha mas com uma vida passada maioritariamente em Portugal, faz questão de não se isolar. “Vim para a residência depois de ter sido operada aos dois joelhos. Como fui bem acolhida e encontrei amizade, não podia estar melhor”, diz, com um sotaque que denuncia a sua origem. Além dos amigos da tertúlia, vai criando laços com outras pessoas que moram nas imediações. “Muitas vezes, vou a um dos cafés aqui da zona. Sento-me e converso com quem está.” Um hábito que partilha com outro dos elementos da tertúlia. Isabel Gomes Mota, ceramista, também gosta de conversar com quem encontra na esplanada da praia, nas imediações. “Mudar de casa implica mudar de bairro”, afirma, justificando assim a necessidade de estar integrada na vizinhança. “Claro que nessas conversas não se entra na intimidade do outro. Não se repete nem se comenta o que se diz”, sublinha, contando que sempre teve facilidade em fazer novos amigos.

Na residência, faz questão de ter outros amigos além dos que constituem a tertúlia. “Às sextas-feiras de manhã, converso durante uma hora com o Dr. Lélio, de 96 anos.” O médico, agora na reforma, costuma contar-lhe histórias da sua vida. “Depois escrevo-as e ele corrige. Na semana que vem vamos falar das brincadeiras da infância.” No tempo que lhe sobra, faz ginástica, escreve uma coluna de opinião na revista da residência, a que deu o nome de “peripécias de uma dona de casa”, e dedica-se à jardinagem e à cerâmica. Uma vida cheia.

Como podemos ajudar os mais velhos a terem amigos?

“Criar amizades na velhice é um desafio que deve envolver toda a sociedade”, defende Filipa Luz, presidente da Associação Nacional de Gerontólogos. Em entrevista à revista Montepio, a especialista deixou algumas sugestões para que a família, a comunidade e os jovens sejam corresponsabilizados para facilitar este processo.

  1. Família
    Além de incentivar os mais velhos a “envolverem-se em atividades da comunidade e apoiá-los na redefinição do seu projeto e propósito de vida”, Filipa Luz diz que os mais próximos também podem identificar as barreiras que dificultam este processo e, posteriormente, ajudar a ultrapassá-las.
  2. Comunidade
    Os conselhos dos vizinhos e as relações que se estabelecem no bairro onde se vive são importantes para as amizades florescerem. Além disso, as autarquias, juntas de freguesia e instituições locais também têm uma palavra a dizer. “Devem criar-se programas e atividades que incluam as pessoas mais velhas, como voluntariado, atividades desportivas, culturais e artísticas.”
  3. Jovens
    Os mais novos devem ser incentivados, desde cedo, a criarem laços com os idosos, defende a presidente da Associação Nacional de Gerontólogos. “É uma ferramenta para o combate ao idadismo porque cria oportunidades de desobstrução de mitos e estereótipos, passando a mensagem de que estamos sempre a tempo de fazer novas amizades, independentemente da idade.”

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