“Se procuramos sozinhos o lucro, obteremos sempre pouco”

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Todos falam de inteligência artificial. Mas sabemos o que é a inteligência natural? A pergunta de Maurizio Ferraris, colocada no âmbito da entrevista à revista Montepio, serve de alerta para quem pensa que a “nova” inteligência vai superar a “tradicional”. “É impossível por muitas razões, em particular pelo facto de a inteligência natural ser a expressão de um corpo, não de uma máquina, e, através desse corpo, em correlação com tecnologias como a linguagem e a escrita, está inserido num mundo social e num mundo histórico.”

O filósofo italiano foi o segundo convidado do ciclo de conferências BEIRA, organizado com o apoio do Montepio Associação Mutualista, que abordou este e outros temas da filosofia atual. Nesta entrevista exclusiva, Ferraris fala dos conceitos de webfare e documentalidade, dá dicas aos jovens filósofos do presente e admite que gostaria de viver no futuro.

Na sua opinião, de que modo a era digital molda a nossa compreensão da realidade e da existência, e quais as implicações para as interações sociais e o conceito de verdade?

O digital molda a nossa compreensão como qualquer outra tecnologia. Assim como o uso de ferramentas básicas, como um bastão ou o domínio do fogo, mudou a nossa visão do mundo, o mesmo ocorreu com a escrita e, depois, com a impressão de caracteres. Temos o costume de subestimar estas mudanças e superestimar as trazidas pelas tecnologias mais recentes. Mas isso é uma ilusão de perspetiva. Claro que, em comparação com outras tecnologias, o digital potencia a interação social e, por essa via, a possibilidade de fazer circular informações verdadeiras ou falsas. No entanto, a nossa noção de verdade não mudou. Quem assume a pós-verdade sabe muito bem o que é a verdade, apenas acha a mentira mais conveniente.

De que modo o seu conceito de “documentalidade” se cruza com as noções tradicionais de verdade e de conhecimento, especialmente na era da sobrecarga de informação?

A documentalidade, a meu ver, é um complemento das noções tradicionais de verdade e de conhecimento. [A teoria] diz apenas que, além de objetos naturais, como os rios ou os relâmpagos, e objetos ideais, como os números, existem objetos sociais: os casamentos, as teorias científicas ou as festas de aniversário. Estes objetos existem apenas se forem registados na mente ou, de preferência, num suporte externo. Isto explica a proliferação de documentos no mundo social e, ainda mais, a razão de o grande capital da nossa época ser o capital documental. Ou seja, a massa de dados produzidos, de modo automático, no mundo digital.

No livro Doc-humanity (2022) introduziu o conceito de webfare, uma forma de bem-estar digital. Como podemos usar a web para o bem-estar de todos?

Os dados são renováveis. De acordo com as leis europeias, se solicitar os meus dados ao Google ou à Amazon tenho o direito de os obter sem que, para tal, os retire dessas plataformas, que investiram dinheiro em pesquisa e desenvolvimento para os produzir. Obviamente que os meus dados, sozinhos, nada valem, ou muito pouco. Mas se os confiar a uma instituição alternativa (um banco, uma cooperativa…) que os agregue aos de milhares ou milhões de dados de outras pessoas, forma-se um capital alternativo que pode ser investido para o bem-estar de uma coletividade, ao invés do enriquecimento de poucos. A isso chamo webfare.

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Na década de 1990, todos estavam empolgados com a web e os seus benefícios. Agora, há cada vez mais o sentimento de frustração: as fake news e os deepfakes, o impacto do digital nas democracias, etc. Estamos a viver melhor agora? A web ainda vale a pena?

Na década de 1990, a web era um sonho que estava a tornar-se realidade, mas do qual sabíamos muito pouco. De facto, havia apenas o e-mail e alguns motores de busca primitivos. Agora, a web penetrou em todos os aspetos da nossa vida e não surpreende que os elementos negativos sejam reconhecidos. Porque, infelizmente, na vida as coisas negativas são mais numerosas ou, pelo menos, mais barulhentas que as positivas.

Defende que todos podemos produzir valor através da big data e que isso deveria levar a uma redistribuição dos lucros. Por que razão isto não está a verificar-se?

Porque não se pensou na solução simples que indiquei quando falei de webfare: unirmo-nos para capitalizar os dados. Se procuramos sozinhos o lucro obteremos sempre pouco, ou nada. Os dados apenas são importantes e significativos se formos muitos e alcançarmos uma massa crítica.

Como vai evoluir a web e de que modo moldará as nossas vidas?

Essas previsões são sempre arriscadas. Mas o já imenso arquivo que nos aproxima daquilo a que chamo docusfera vai expandir-se bastante, pois esta é muito mais ampla e importante do que a infosfera, porque não contém apenas documentos inteligíveis, integra uma massa gigantesca de dados que – repito – por si só significam pouco ou nada, mas que, se correlacionados e interpretados, podem fornecer conhecimentos importantíssimos.

Como é que a estrutura filosófica do novo realismo pode contribuir para enfrentar desafios sociais contemporâneos, como a polarização política e as crises ambientais?

O novo realismo combate a ideia de que a realidade é socialmente construída, portanto, é naturalmente contrário à política pós-moderna, ao sonho de construir a realidade como se fosse dócil como barro ou como uma imagem. Está também, obviamente, atento às crises ambientais, visto que os componentes do movimento são pessoas razoáveis e estão bem conscientes, por exemplo, do facto de que aqueles que propõem viver no virtual não consideram o impacto ecológico dos dispositivos que o produzem.

Todos falam de inteligência artificial. Quais são, na sua opinião, as implicações éticas mais urgentes dos avanços tecnológicos e da nossa crescente dependência das interfaces digitais?

O grande problema, a meu ver, não é ético mas teórico. Sabemos o que é a inteligência natural na época da inteligência artificial? Não acredito, e isso é demonstrado pela facilidade com que se pensa que a inteligência artificial pode emular ou superar a natural. O que é impossível por muitas razões, em particular pelo facto de que a inteligência natural é a expressão de um corpo, não de uma máquina, e através desse corpo, em correlação com tecnologias como a linguagem e a escrita, está inserido num mundo social e num mundo histórico. O que não faz sentido para a inteligência artificial.

Diz que a imbecilidade é o grande acelerador da cultura: se não nos sentíssemos estúpidos, não nos interessaríamos pela cultura. A cultura torna-nos inteligentes?

Espero que sim, caso contrário estaríamos a perder o nosso tempo neste preciso momento [risos]. A inteligência natural, conforme referi, tem uma componente biológica, o nosso corpo e as suas qualidades, que não existe numa máquina. E uma componente tecnológica: a posição ereta, a capacidade de simbolizar, a capacidade de comunicar. A cultura é a forma mais elevada dessas componentes tecnológicas e é precisamente essa tecnologia espiritual que nos torna mais inteligentes.

O que pensa da relação entre a filosofia e questões contemporâneas, como as alterações climáticas, a inteligência artificial ou a justiça social?

Estes temas são cruciais para a filosofia hoje, assim como o conhecimento da natureza era central no século XVII, ou a teologia na Idade Média. Qualquer filosofia que não se ocupe, pelo menos em parte, desses problemas, corre o risco de parecer um exercício inútil.

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“Gostaria de viver no futuro”

É um escritor prolífico. Qual é o seu processo quando escreve? Em que momento deste processo pensa: “Okay, tenho uma ideia. Vou escrever um livro.”

Escrevo quase sempre, por isso sou prolífico [risos]. Agora a sério: escrevo melhor de manhã. Muitas vezes, levanto-me muito cedo e às 9h já escrevi tudo o que precisava. Os livros, muitas vezes, nascem de um artigo de jornal, no qual exponho a ideia na sua forma mais elementar. Articulá-la será a tarefa do livro. Outras vezes, os livros nascem de problemas pessoais e são uma forma de os resolver ou, pelo menos, descrever. E quando não consigo escrever um livro da primeira ou da segunda formas, inundo as pessoas que me são próximas de mensagens de WhatsApp (não estou nas redes sociais, não gosto de uma escrita que é, em parte, privada, em parte pública, portanto, tem um status ambíguo).

Que conselho daria aos jovens filósofos ou a quem se interessa por filosofia?

Recomendaria sempre começar pela vida e pelos problemas que esta coloca. E isso vale não apenas para quem quer colocar a filosofia no seu dia a dia, mas também para os que querem cultivar uma filosofia profissional ou académica. A filosofia tende, pela sua natureza, a tornar-se abstrata e impessoal. Justamente por isso é aconselhável começar por uma base concreta e pessoal.

Em que época da nossa História gostaria de ter vivido e porquê? E que pensadores e filósofos gostaria de ter conhecido?

Como estou convencido de que o que somos é fortemente determinado pelo mundo técnico onde nos encontramos, estou feliz por viver na minha época. Se pudesse, gostaria de viver no futuro. Entre os pensadores que gostaria de ter conhecido estão Platão, para entender onde ironizava e onde não o fazia. Plotino, para ver o momento em que a filosofia e o misticismo se encontram. E [David] Hume, universalmente considerado uma pessoa muito simpática.

Quem é Maurizio Ferraris?

Filósofo nascido em 1956, em Turim, Itália, Maurizio Ferraris é reconhecido pelo seu trabalho no campo da ontologia social. Foi um dos fundadores do movimento do realismo especulativo, teoria filosófica que procura superar as limitações do pós-modernismo, e tornou-se célebre, entre outros, pela teoria da documentalidade, que explora o modo como os documentos e registos constroem a realidade social. Estes documentos, que podem ser escritos, digitais ou outras informações armazenadas, são a base das instituições, leis e práticas sociais.

Professor de Filosofia no Departamento de Literatura e Filosofia da Universidade de Turim, Ferraris foi influenciado pelas ideias do filósofo francês Jacques Derrida, tendo desenvolvido críticas e reflexões a partir do pensamento derridiano. A sua obra tem influenciado a nova filosofia, as ciências sociais e os estudos dos media.

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